Uma desvalorização do real poderia ajudar uma grande parte dos setores industriais brasileiros a reverter a crise enfrentada nos últimos anos. Porém, seria suficiente apenas como medida de curto prazo. Independentemente do nome a ser eleito à Presidência do país, estudiosos do setor industrial ouvidos pelo Valor acreditam que, no longo prazo, o Brasil precisará repensar também a política especificamente voltada ao setor industrial, tendo foco na melhora da competitividade, em grande medida, com avanços na modernização e inovação tecnológica.
Renato Garcia, professor do Instituto de Economia da Unicamp, afirma que, embora vários setores da indústria de transformação estejam com problemas, a valorização do real atinge principalmente aqueles cuja relação preço/salário é muito importante para a sua competitividade, estando mais sujeitos à concorrência com importados, como é o caso da produção de bens de consumo de massa, como têxtil e calçados.
Garcia acredita que uma reversão da sobrevalorização pode mudar o cenário para alguns segmentos dentro de setores como esses. “Supondo que ocorra uma desvalorização do real ante o dólar, boa parte vai se recuperar. Isso deve ocorrer com a produção de itens mais commoditizados, que serão internalizados rapidamente”, disse, citando como exemplo móveis, parte das cerâmicas, parte dos plásticos, sapatos e produtos têxteis mais básicos. São setores com tecnologia difusa, nos quais as dificuldades para se remontar fábricas – que possivelmente foram desativadas, em função da avalanche de produtos importados no mercado nacional – são menores.
A crise da indústria brasileira se refletiu nos últimos anos principalmente na produção de 10 setores, de acordo com a Pesquisa Industrial Anual (PIA), que apura o desempenho de 24 ramos industriais. Entre os setores mais afetados estão têxtil, madeira, papel e celulose, coque e derivados de petróleo, produtos químicos, farmacêuticos, metalurgia, metalurgia exceto máquinas, informática e outros equipamentos de transportes.
Nesses setores foi constatada, ainda que em graus diferentes, a redução da participação no Valor de Transformação Industrial (VTI) dentro do total de valor gerado pela indústria de transformação, quando comparados os dados de 2012 (os mais atuais disponíveis) com os de 2007 – um ano antes da eclosão da crise mundial.
O VTI é uma medida importante, porque é uma variável próxima ao conceito de valor adicionado que cada setor gerou dentro da indústria de transformação, contribuindo assim para o resultado do Produto Interno Bruto (PIB). Para alguns economistas, o indicador compõe a cesta de estatísticas que sinalizam uma desindustrialização em curso, com algumas interpretações entendendo que o fenômeno ocorre de maneira precoce, porque o Brasil teria começado a se desindustrializar com um nível de renda per capita muito inferior ao dos países desenvolvidos.
A professora da PUC-SP Anita Kon concorda que uma desvalorização do real seria de grande relevância, mas destaca que não bastam mudanças em uma variável macroeconômica para reverter a crise do setor. “Os empresários precisam também de juros mais baixos e uma política industrial efetiva de longo prazo”, disse.
A proposta de uma nova política industrial ganha corpo entre alguns economistas pela crítica que fazem da política industrial existente, basicamente o Plano Brasil Maior. “Nós não temos uma política industrial. Não adianta ter uma política que fique só no papel. Precisamos de uma política industrial de longo prazo que não seja para tampar buraco ou apagar fogo”, afirma Anita. Garcia, por outro lado, reconhece méritos no Brasil Maior, mas aponta que há algumas falhas, como o fato de ter havido medidas mais compensatórias ao setor industrial do que indutoras de internalização de capacidades tecnológicas.
Além disso, a necessidade de uma política industrial de longo prazo é ressaltada pelo entendimento de que os problemas mais de fundo do setor industrial não são resolvidos apenas com mudanças macroeconômicas, como no câmbio. Entre essas questões, Garcia cita as baixas escalas de produção, baixos investimentos em pesquisa e desenvolvimento, incapacidade de as empresas brasileiras participarem mais das cadeias globais de valor, bem como pela incapacidade de o setor industrial incorporar capacitações sustentáveis no longo prazo.
Como elementos de uma nova política industrial, Anita cita melhores condições no capital de giro, melhora da infraestrutura e medidas macroeconômicas e microeconômicas em sintonia. “Se é estabelecida uma certa taxa de juros (Selic), não se deve com isso pensar só no equilíbrio macro, mas que ela vai ter influências de diferentes tipos na indústria”, diz.
Assim como Anita, Garcia defende uma política industrial de longo prazo que eleja setores prioritários. “Em alguns casos, o bonde passou e o perdemos, mas temos que tentar pensar daqui para frente”, disse. Como casos em que o bonde já passou, ele citou o complexo de eletrônicos, como a fabricação de chips, que não foi internalizada pelo Brasil. Isso não significa que não há o que fazer, mas é preciso identificar setores”.
Entre os dez setores que apresentaram queda na PIA estão alguns de alto conteúdo tecnológico, que seriam importantes para puxar o crescimento do país, colocando-o em uma melhor posição nas cadeias globais de produção, na avaliação de alguns economistas. Além disso, a lista demonstra que há uma certa heterogeneidade da crise: ela vai do têxtil à metalurgia e ao ramo de transportes.
Apesar de o câmbio ser apontado como importante ferramenta de saída da crise para parte do setor industrial, economistas afirmam que existe uma probabilidade baixa de o governo – seja quem for o nome eleito no segundo turno – mexer no câmbio, porque essa medida traria aumento de custos e poderia ter efeitos sobre a inflação. Atualmente, existe uma atuação do governo no câmbio para evitar uma desvalorização excessiva, pelo entendimento de que isso pode ter impacto sobre a inflação, por meio do encarecimento das importações.
“É possível, portanto, que a mudança no câmbio não venha de medidas deliberadas do governo brasileiro. Está tudo mundo de olho no Fed [o banco central americano] nos Estados Unidos. Se há um aumento de juros lá, certamente vai haver mudanças no câmbio brasileiro”, destaca o professor da Unicamp.
Em uma avaliação distinta de Anita e de Garcia, Sandra Rios, diretora do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento, acha que o país não deveria temer o “desmonte” da produção vertical integrada que vem ocorrendo, o que alguns classificam como “perda de elos das cadeias produtivas” ou de desindustrialização. Ela entende que o país deve se especializar naquilo em que já tem maior competitividade. Por trás disso está a ideia de que o “desmonte” faz parte de um processo global natural, considerando a nova forma de atuação da indústria em cadeias produtivas globais, nas quais as grandes empresas escolhem onde e o que produzir em cada país, conforme seus interesses.
Embora Sandra concorde que a sobreapreciação do real prejudica a indústria, ela considera que o país precisa buscar especializações, como a de produtor de matérias-primas, vista por ela como “inescapável para um país abundante em recursos naturais”.
Sobre setores intensivos em mão de obra, como é o caso de têxtil e calçados, por exemplo, Sandra considera que, antes da emergência da China no mercado internacional, trazendo todos os países da região com ela, o país podia até ter “alguma vantagem comparativa nisso”, mas esse não é o caso do Brasil de hoje.
“De um lado, o Brasil concorre agora com países que são de fato abundantes em mão de obra e, de outro lado, temos um aumento da ocupação da mão de obra e um encarecimento do custo do trabalho que não nos permite mais competir nesse nicho [de mão de obra intensiva] de preço”, diz Sandra.
De acordo com ela, o Brasil tenta resistir à tendência global de redução da produção integrada verticalmente. “A ênfase em políticas que buscam contrarrestar essa tendência acabam por prejudicar a competitividade”, afirma. “Quando há uma política para manter a produção local de todas as partes, peças, componentes, insumos e bens de capital, é inevitável um encarecimento da produção que vai se fazer sentir de forma mais intensa nos elos da cadeia que estão mais na ponta”, diz.
Para Sandra, a solução não passa por uma política industrial que eleja setores prioritários ou evite a perda de alguns segmentos. “Pode até ter fábrica têxtil para produtos mais sofisticados, com um corte especial, ou naquela que haja alguma vantagem de produzir localmente, como moda praia, com um tipo de desenho que ainda valha a pena produzir aqui por conta da proximidade com o local do produto. Mas é difícil imaginar que o país vai ser competitivo em camiseta de malha sintética ou em produção de sapatos de borracha.”
Fonte: Valor Econômico