Por Alexandre Herlin e José Andrés Lopes da Costa
Como amplamente divulgado pelos meios de comunicação, o Decreto nº 8.426/2015 aumentou ou, eufemisticamente, “restabeleceu”, de 0% para 0,65% e 4%, as alíquotas do PIS e da Cofins não cumulativos sobre as receitas financeiras auferidas, a partir de 01 de julho, pelas pessoas jurídicas em geral, com primeiro vencimento amanhã. Essa iniciativa deu ensejo a diversas medidas judiciais ajuizadas por contribuintes inconformados com o aumento de alíquota, sobretudo porque veiculado por decreto, o que ofende o princípio da legalidade, além de contrariar à sistemática de não cumulatividade, própria desses tributos. Ocorre que grande parte da argumentação desenvolvida nesse sentido termina por esbarrar em, pelo menos, duas perguntas incômodas.
Esses tributos não poderiam incidir sobre receitas financeiras de empresa que não tenha por objeto o exercício de atividade financeira Primeira pergunta: Por que razão o restabelecimento da alíquota via decreto seria ilegal e sua redução de 9,25% para 0%, também por decreto, seria legal? E mais, a ilegalidade do decreto, no que concerne ao restabelecimento da alíquota, se estenderia também à revogação do decreto anterior, que havia reduzido esse percentual para 0%?
Segunda pergunta: Se concluirmos que ambos os decretos violam o princípio da reserva de lei ou que a revogação do primeiro pelo segundo se afigura legítima, passa a valer a alíquota geral de 9,25% em lugar dos 4,65% hoje cobrados? Se for assim, em se declarando a inconstitucionalidade ou ilegalidade do Decreto nº 8.426, haveria o risco de os contribuintes se verem em situação pior do que a existente hoje em dia? Tais perguntas, que já vêm sendo habilidosamente suscitadas pela Fazenda Nacional em juízo, decorrem de uma análise incompleta da matéria que, se examinada sob uma perspectiva mais ampla, nos levará à conclusão de que os fundamentos invocados pela esmagadora maioria dos contribuintes não são os únicos, nem nos parecem ser os mais fortes, para justificar a flagrante ilegalidade do “restabelecimento” de alíquotas trazido pelo mencionado decreto.
Com efeito, antes de toda a discussão sobre a validade do restabelecimento das alíquotas do PIS e da Cofins via decreto ou a necessidade de se outorgar aos contribuintes, em contrapartida por esse aumento, direito ao crédito calculado sobre despesas financeiras, existe uma questão fundamental e até mesmo prejudicial ao exame desses argumentos. É que esses tributos sequer poderiam incidir sobre receitas financeiras auferidas por pessoas jurídicas que não tenham por objeto principal o exercício de atividade financeira.
Se não incidem, não podem ter sua alíquota criada, aumentada, majorada ou “restabelecida”, por simples questão de lógica. Basta ver que, com a nova redação dada pela Lei nº 12.973/2014 às leis nos 10.637/2002 e 10.833/2003, que instituíram o PIS e a Cofins não cumulativos, essas contribuições, que antes incidiam sobre a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sem qualquer distinção, passaram a incidir apenas sobre as receitas inseridas no conceito de receita bruta previsto no Decreto lei nº 1.598/77.
A receita bruta de que trata o Decreto lei nº 1.598/77, por sua vez, compreende (i) o produto da venda de bens nas operações de conta própria, (ii) o preço da prestação de serviços em geral, (iii) o resultado auferido nas operações de conta alheia e (iv) as receitas da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica que não decorram das situações anteriormente especificadas. Ora, que as receitas financeiras, cujas alíquotas foram “restabelecidas” pelo Decreto nº 8.426/2015, não decorrem da venda de bens, nem da prestação de serviços, é indiscutível.
Igualmente não seria possível classificá-las como resultado auferido em operações de conta alheia, pois não se referem à atividade realizada por conta e ordem de terceiros ou em comissão mercantil. Do mesmo modo, somente caberia qualificá-las como provenientes da atividade principal de uma pessoa jurídica, para esses efeitos, quando percebidas por instituição financeira devidamente autorizada a funcionar pelo Banco Central do Brasil ou por empresa que, mesmo não estando autorizada, tenha por objeto a captação, a intermediação ou a aplicação de recursos financeiros de terceiros.
E essa qualificação, vale destacar, sequer seria possível no caso concreto, pois as instituições financeiras permanecem sujeitas ao regime cumulativo de apuração das mencionadas contribuições, previsto nas Leis 9.701/98 e 9.718/98, sequer sendo alcançadas pelo Decreto nº 8.426/2015. Logo, as receitas financeiras provenientes de investimentos com recursos próprios de pessoa jurídica dedicada à venda de bens, à prestação de serviços ou a qualquer outra atividade não financeira, não estão abrangidas pelo conceito de receita bruta previsto na redação do Decreto Lei nº 1.598/77. Nesse contexto, ao “restabelecer” as alíquotas do PIS e da Cofins não cumulativos sobre receitas financeiras, quando esse tipo de receita já não estava mais no campo de incidência dessas contribuições, o Decreto nº 8.436/2015 desviou-se da sua função, dispondo de forma contrária à lei e violando o princípio constitucional da hierarquia das normas, consagrado na Constituição Federal e na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores.
Esses motivos, portanto, já nos parecem suficientes para, de forma incontestável e independente dos demais argumentos, justificar a invalidade do Decreto nº 8.426/2015, uma vez que não se pode “restabelecer” alíquota de tributo que, por força de lei, já não incide sobre determinada hipótese concreta. Alexandre Herlin e José Andrés Lopes da Costa são, respectivamente, pósgraduado em direito tributário pelo IBET, MBA em direito de empresas pelo IBMEC; professor da pós-graduação da FGVRJ e sócios do Chediak Advogados Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
Fonte: Valor