[:pt]Longe da solução[:]

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Por Antonio Delfim Netto

Olhado de perto, todo regime político consiste numa minoria bem organizada, que controla uma maioria desorganizada e paciente até o momento em que essa se sinta abusada. A história mostra que a tendência ao abuso ­ e, com o tempo, ao abuso absoluto ­ parece tão inevitável quanto a do aumento da entropia no mundo físico.

A ampliação da democracia, que empodera crescentemente os cidadãos pelo sufrágio cada vez mais universal, foi a forma “civilizada” que os homens inventaram para substituir, com o menor atrito possível, a minoria bem organizada (o poder incumbente) em períodos bem definidos, com eleições secretas, livres e abertas.

Como os homens são suscetíveis à manipulação psicológica e à publicidade enganosa e, ainda, porque é impossível o controle da “vantagem inicial” do poder já instalado, a reeleição, quando admitida, deve ser muito bem regulada.

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Hoje, estamos diante de uma das graves consequências do nosso mecanismo de reeleição sem nenhum controle social. Ele permitiu ao governo utilizar todo o seu poder no cargo, sem que houvesse qualquer restrição ao seu objetivo: continuar governo! A campanha eleitoral foi terrível. Desde Bismarck, sabemos que “nunca se mente tanto do que antes de uma eleição, durante uma guerra ou depois de uma caçada”, mas houve um abuso desarrazoado de poder.

Basta comparar os resultados de 2013 com os de 2014, quando os efeitos da política voluntarista que reduzia o crescimento já eram claramente visíveis. Política econômica deveria ter mudado a partir de abril de 2014 Em 2013, o PIB cresceu 2,6% no primeiro trimestre, 3,9% no segundo, 2,4% no terceiro e 2,1% no quarto, com crescimento anual de 2,7%. A taxa de inflação permaneceu constante (5,8%), o superávit primário foi de 1,8% do PIB; o déficit nominal foi de 3,1% do PIB; a dívida bruta/PIB caiu de 54,8% para 53,3% e o déficit em conta corrente foi de 3,4% do PIB.

Permaneciam as incertezas sobre o equilíbrio fiscal de longo prazo, mas é difícil dizer que a situação era ameaçadora. A aprovação do governo em dezembro de 2013 foi 78% (41% de ótimo­bom e 37% de regular, segundo o Datafolha). No primeiro trimestre de 2014 ainda tivemos um crescimento de 2,7%, mas os sinais já eram claros de que estávamos caminhando para um momento muito difícil, que reduziria dramaticamente o ritmo de crescimento.

De fato, o segundo semestre revelou uma queda anual do PIB de 1,2% com relação ao seu homólogo de 2013 e foi murchando: ­0,6% no terceiro trimestre e ­0,2 no quarto. O crescimento anual foi praticamente nulo (0,1%). Era, portanto, evidente que a partir de abril de 2014, quando se confirmou que o voluntarismo ­ativo estava inibindo o investimento e atemorizando o setor privado, o governo deveria ter alterado a política econômica e, ao mesmo tempo, controlado as despesas primárias, uma vez que a receita dos impostos iria certamente diminuir, como, aliás, alertavam os economistas do próprio Ministério da Fazenda. No calor do processo eleitoral, o governo ignorou os fatos por temer que corrigi­los diminuiria as suas chances eleitorais.

O resultado final foi decepcionante: ganhou a eleição, mas levou o Brasil à situação extrema de revelar o desequilíbrio fiscal potencial escondido nos benefícios exorbitantes que alguns grupos, que sempre estiveram suficientemente juntos ao poder, conseguiram na Constituição para proteger as suas rendas, colocando ­as ao abrigo de todo ciclo econômico.

O gráfico abaixo escancara a tragédia. Não deixa dúvida de que já não há qualquer solução possível que não seja o estabelecimento ­ na Constituição ­ de um mecanismo de co­integração quase automático entre a receita e as despesas primárias do governo, que gere um superávit primário para sustentar a relação dívida bruta/PIB em patamar adequado e que torne possível, quando necessário, mitigar os efeitos do ciclo econômico com inteligente política fiscal, que distribua mais equanimemente os seus custos.

A corajosa mudança da presidente Dilma em dezembro de 2014 não produziu os efeitos necessários, porque não enfrentou o verdadeiro problema: o desequilíbrio estrutural inscrito na Constituição de 1988. Ele não foi enfrentado, aliás, por nenhum dos quatro presidentes eleitos diretamente pelo voto popular. Quando estiveram no auge de seu prestígio (e todos, em algum momento estiveram), sempre preferiram dissipar seu patrimônio no marketing fácil.

Nem mesmo o necessário ajuste fiscal foi, de fato, levado a sério. E por uma razão simples: a presidente não seguiu o conselho de Sêneca: “initium salutis est notitia peccati”, no meu pobre latim, ” a salvação começa pelo reconhecimento dos pecados…” Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA­USP, ex­ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças­feiras

Fonte: Valor

 

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