Abolição de rituais rígidos, receitas caseiras de cosméticos, autoaceitação e valorização do bem-estar. Nunca questionamos tão intensamente os padrões estéticos: qual o impacto da pandemia na percepção que temos sobre nós mesmas? Distante de conclusões e da imposição de novas regras, uma certeza: todos os caminhos apontam para existências mais amplas, autônomas e diversas da beleza
Como será nossa imagem ao abrirmos a porta de casa quando a pandemia passar? Por mais lúdica que pareça essa cena, o exercício de imaginá-la é irresistível. Estamos há meses socialmente isolados, com interações pontuais (e muitas vezes editadas) pela internet e a expectativa sobre como as pessoas estão se parecendo faz parte de um imaginário inevitável. O que alimenta essa imaginação não é apenas o tempo em que estamos distantes uns dos outros, mas a situação que enfrentamos.
Vivemos um cenário inédito, frágil, inseguro, e a vida entre quatro paredes pode ter provocado grandes mudanças. Conceituais e físicas. Durante esse período, adotamos novas práticas de autocuidado e a relação com beleza e cosmética, em alguma medida, mudou. Qual o significado dessa nova imagem? Estamos nos transformando em pessoas diferentes? Essas mudanças se sustentarão no longo prazo? Todo mundo vai mudar? São muitas perguntas e poucas respostas possíveis por enquanto. Mas alguns ventos estão soprando e apontando direções para certas reflexões.
O que já podemos detectar é que, por causa das restrições, tanto de mobilidade quanto financeiras, grande parte das preocupações estéticas ganhou outra força. No Brasil, as rotinas cosméticas são exigentes, acima da média, e durante o tempo em que passamos dentro de casa pudemos depurar nossas necessidades e realinhar a ordem de prioridades. Os novos hábitos incluem uma chamada de vídeo com o cabeleireiro para cortar a franja, conviver bem com as unhas não feitas, cultivar os fios grisalhos. Outros não mudaram tanto: a máscara facial de argila de todos os domingos ajuda a equilibrar uma realidade imposta de uma hora para outra.
Segundo um levantamento do Google Brasil, a pesquisa por “tônico de alecrim”, por exemplo, uma receita caseira para crescimento capilar, aumentou 668% entre março e julho de 2020 comparado ao mesmo período de 2019. As buscas por “benefícios da argila preta” cresceram 224% na mesma fase. Isso significa que os tratamentos caseiros e os métodos “faça você mesmo” ganharam protagonismo e garantiram a porção de autocuidado que a gente tanto valoriza, já que as clínicas e os salões de cabeleireiros se tornaram uma possibilidade muito distante.
Mas, se, por um lado, as questões práticas nos conduziram a novas escolhas e redirecionamentos, o cenário de isolamento também abriu espaço para reflexões mais profundas a respeito dos cuidados com o corpo. A especialista em tendências Iza Dezon, da Dezon Consultoria Estratégica e colaboradora da Peclers Paris no Brasil, aponta o peso do convívio social nesse reposicionamento e na nova relação que estabelecemos entre o interno e o externo. “O que a gente aprende com a falta de olhar do outro é entender, de uma maneira sincera, o que de fato a gente gosta. Já que não tem ninguém olhando, você acaba se permitindo. Ficar em casa possibilitou revelar preferências e o que é de fato importante para cada um. Essa autoindulgência pode ter aflorado um relacionamento um pouco mais sincero com você mesmo. E isso, provavelmente, vai refletir no seu visual, você vai querer transparecer por fora suas mudanças internas. Mas é importante lembrar que isso não é o fim dos padrões. É apenas um exercício de mudar um padrão por outro”, pontua.
Em um bate-papo por Zoom, Gwyneth Paltrow, atriz e guru de beleza e bem-estar, responsável pela plataforma Goop, aponta o isolamento e a mudança do fluxo de vida como responsáveis por muitas reflexões que estão impulsionando mudanças em relação à autoimagem: “Tenho observado nas mulheres à minha volta, mulheres que eu amo e mulheres com as quais eu trabalho, que estão questionando muitas coisas: quem são, com quem estão, como se sentem em relação a elas mesmas, como se sentem em relação ao próprio peso, à beleza, porque existe muito menos distração. Vivemos um momento em que ficamos quietas, estamos nos ouvindo, pensando nos ajustes necessários para nos sentirmos melhor”.
Tanto que, para além das unhas feitas e da raiz retocada, práticas de bem-estar assumiram papel fundamental, tanto para a manutenção do corpo quanto para a preservação da saúde mental. As buscas no Google pela expressão “dormir bem” cresceram 150% comparando o mês de agosto de 2020 com as primeiras semanas do mesmo ano. “Para relaxar”, “para acalmar”, “para aliviar” foram buscadas 72% a mais em maio de 2020 do que em maio de 2019. E as práticas campeãs da quarentena, ioga e meditação online, tiveram 400% a mais de interesse na internet entre maio de 2019 e maio de 2020.
Efeito batom sem batom
Com a vida social restrita, a maquiagem, uma das grandes molas propulsoras do mercado de beleza, cedeu espaço para o setor de skincare. Durante a Semana de Mercado da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec), no início de setembro, Margareth Utimura, líder do setor de higiene e beleza da Nielsen Brasil, apresentou um panorama da área em relação ao período de 29 de março a 14 de junho de 2020, comparado ao do ano anterior. O setor de cuidados com a beleza, como um todo, caiu 5,2% – e, desse montante, 39% da queda se deve à redução do consumo de makeup.
O sopro de esperança está nos dados de intenção: segundo pesquisa da Nielsen, 89% das pessoas não pretende parar de se maquiar, nem durante nem depois que a pandemia passar. Jenni Middleton, diretora de beleza global da WGSN, lembra que, ainda que em distanciamento social, existe um contato visual importante, sobretudo em relações de trabalho: “Como muitas pessoas continuam a trabalhar em casa, a procura por produtos que ajudem a melhorar o visual em chamadas de vídeo continua. É aqui que o consumo de kits para sobrancelhas, máscara de cílios e corretivos aumenta – assim como o de produtos híbridos, que funcionam tanto como cuidado para a pele quanto como maquiagem, garantindo um visual natural, fresco e iluminado”.
Além dos encontros virtuais, já tem muita gente em atividade presencial, com as aberturas parciais pelo Brasil. Em outros países, grande parte do comércio e dos escritórios voltou a funcionar regularmente e, nesse contexto, segundo Jenni, observa-se um novo comportamento. “Todo mundo fala sobre o ‘efeito batom’ (expressão cunhada por Leonard Lauder em 2001, depois dos atentados de 11 de setembro) após crises econômicas e recessões, mas agora é interessante observar que, com os lábios escondidos pela máscara de proteção, a pequena compra discricionária será mais sobre maquiagem para os olhos e esmaltes”, analisa.
Relação tempo x espaço
No afã de entender que cara terá o mundo pós-pandêmico, é preciso levar em consideração o tempo dos processos. “Mudanças sociais não são do dia para a noite. E existem algumas tão íntimas que para nós são enormes, mas os outros nem percebem. Para quem faz as unhas todas as semanas há 30 anos, abandonar o hábito pode ser um choque, mas não vai impactar a sociedade”, pondera Iza Dezon.
As mudanças que estamos percebendo agora são resultado de processo e movimentos anteriores. “A gente espera que tudo seja revolucionado imediatamente. Olhamos hoje para o movimento hippie e pensamos que foi gigante e mudou o mundo. Mas foi minúsculo. Feito por um pequeno grupo de burgueses, mas muito bem midiatizado. E tudo o que parecia absurdamente transgressor na época, como ioga, o movimento oriental de meditação, a legalização da Cannabis, o tie-dye (que, aliás, virou obsessão na quarentena), levou um tempo para ser incorporado na sociedade.
Porque as pessoas mais velhas que viveram essa época nem percebiam o que estava acontecendo. Existe uma expectativa de que a mudança aconteça de uma forma muito repentina, forte, como se fosse uma grande revolução. Mas vamos ver novos comportamentos em pequenos grupos, os trendsetters, os early adopters. São eles que vão sair de casa com esse perfil diferente primeiro e vão começar a disseminar uma mudança mais geral de comportamento”, conclui Iza.
Ainda que sob a lente histórica, o cenário da pandemia, inédito, está acelerando comportamentos. “No WGSN, vimos muitas das tendências que previmos para 2022 serem aceleradas. Por exemplo: o uso de tecnologia para diagnosticar, analisar e prescrever tratamentos para pele e cabelo. Destacamos produtos no início do ano e eles já estão se tornando populares à medida que os consumidores ainda não estão à vontade para visitar clínicas de estética ou dermatologistas”, afirma Jenni.
O grande movimento dessa nova realidade que estamos tentando desvendar talvez seja o do autocuidado que, por instinto de preservação da espécie, priorizamos durante o isolamento social. “O que estamos percebendo agora é a necessidade de cuidar do próximo, da autoestima do próximo, se preocupar que o outro esteja feliz, não machucá-lo. E, a partir dessas reflexões, dessas noções de pluralidade, devemos chegar, de maneira mais genuína do que agora, a noções de beleza e estética mais plurais, mais democráticas, para que todos se sintam parte do mesmo mundo.” Oxalá.
Fonte: Revista Marie Claire