Implicações jurídicas do conceito de praça

Implicações jurídicas do conceito de praça

Desafios enfrentados a partir de divergências de interpretações conduziram a Lei nº 14.395/22 a definir o conceito de praça para efeitos de apuração do valor tributável

Por Tercio Sampaio Ferraz Junior

A interpretação do termo “praça” tem sido motivo de incerteza, especialmente devido à sua aplicação divergente pela Administração Tributária Federal ao longo do tempo. Os desafios enfrentados a partir dessas divergências de interpretações conduziram a Lei nº 14.395/22 a definir o conceito de praça para efeitos de apuração do valor tributável, buscando, assim, trazer clareza e confiabilidade ao conceito, mormente em vista do contexto jurídico e constitucional que respalda a legitimidade das leis interpretativas, destacando a importância de tais instrumentos para a estabilidade e coerência do sistema legal.

A expressão da Lei nº 14.395/22   define: para os efeitos de apuração do valor tributável, considera-se praça o Município onde está situado o estabelecimento do remetente. Refere-se à legislação anterior (Lei nº 4.502 de 1964) que, para proteger a base de cálculo do IPI, estabelece um valor tributável mínimo em operações praticadas entre estabelecimentos de uma mesma empresa e entre empresas interdependentes, determinando que o valor não poderá ser inferior ao preço corrente no mercado atacadista da praça do remetente, quando o produto for remetido a outro estabelecimento da mesma pessoa jurídica. A partir daí surgia a divergência: se o vocábulo “praça”, empregado no inciso I do artigo 195 do RIPI/2010 significaria “cidade”, “município”, “localidade”, “região metropolitana”, “todo o território nacional” ou até “nenhum território” (site na Internet).

A Administração Tributária Federal, mediante parecer normativo (Parecer Normativo CST nº 44/1981), sempre interpretara “praça” como sendo uma localidade restrita a cidade ou município, sendo que o Parecer Normativo continua vigente até os dias atuais. Porém, a despeito dessa interpretação e de todo um contexto jurisprudencial, desde o início dos anos 2000, diversos autos de infração foram lavrados pela Receita Federal alargando o conceito de praça, ora para região metropolitana, ora para estado, chegando muitas vezes a considerar praça como sendo qualquer localidade onde o produto industrializado esteja disponível para venda no atacado (“praça” virtual na internet?).

Foi essa divergência e justamente os riscos para a segurança jurídica que conduziram ao comando normativo da Lei nº 14.395/22. Reconhecendo existir nessa oscilação um significado controverso a gerar inconsistência e imprevisibilidade do sentido da norma, o Legislador veiculou comando legal para conferir certeza e confiabilidade ao conceito de praça do remetente da mencionada lei. Seguiu, assim, o dispositivo do art. 106 do CTN – Código Tributário Nacional: “A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa sobre lei interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;

Determina o CTN tratar-se de lei “expressamente interpretativa“. Contudo, não é necessário nem plausível que leis interpretativas se autodenominem interpretativas ou que contenham um modal do tipo “para efeito de interpretação”. Aliomar Baleeiro já esclarecia que a fórmula não quer dizer que a nova lei tenha de empregar essas palavras sacramentais, bastando que, ao reportar-se aos dispositivos interpretados, lhes defina o sentido e aclare as dúvidas. Nessa linha, por exemplo, o STJ, veio reconhecer a natureza interpretativa do artigo 11 da Lei nº 9.779/99 (REsp 746.768/MG), a despeito da inexistência de qualquer referência textual expressa nesse sentido.

O comando da Lei nº 14.395/22 tem, efetivamente, um teor interpretativo: Art. 1º Esta Lei altera a Lei nº 4.502, de 30 de novembro de 1964, para conceituar o termo “praça” para os efeitos de determinação do valor mínimo tributável nela previsto. Seu objeto não é meramente alterar o significado de um texto legal, objeto de qualquer interpretação doutrinária, mas determinar por lei que o sentido expresso em lei pregressa tem um teor interpretativo: Art. 1º Esta Lei altera a Lei nº 4.502, de 30 de novembro de 1964, para conceituar o termo “praça” para os efeitos de determinação do valor mínimo tributável nela previsto.

Nem faz sentido recusar-lhe o caráter interpretativo porque enunciaria que altera lei anterior. A expressão altera não autoriza essa conclusão. Como passa de um significado controverso para um significado vinculante (interpretação autêntica), a lei interpretativa sempre altera uma lei anterior. Mas, mediante interpretação, nenhum elemento novo conduz ao texto interpretado, cujo sentido pura e simplesmente determina. O que o Legislador fez foi, assim, reconfigurar os traços denotativos da expressão praça em favor de uma maior confiabilidade, como se a norma interpretada e a interpretação posterior, mediante enunciado prescritivo, constituíssem um só ato normativo. E, ao fazê-lo, exerceu uma competência constitucional: É plausível, em face do Ordenamento Constitucional Brasileiro, o reconhecimento da admissibilidade de Leis Interpretativas, que configuram instrumento juridicamente idôneo de veiculação da denominada interpretação autêntica (STF, MC/ADin 605, Relator Min. Celso de Mello, DJ 05.03.1993).

Tercio Sampaio Ferraz Junior

Tercio Sampaio Ferraz Junior é advogado, professor titular aposentado e Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; exerce a docência no curso de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Fonte: Jornal Valor Econômico

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