Por Vinicius Branco
A tentativa de reorganização do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), empreendida pelo governo federal após a deflagração da Operação Zelotes, provocou uma forte reação de advogados indicados ao cargo de conselheiro pelas confederações e sindicatos representativos de setores econômicos e categorias profissionais. O movimento teve início com a publicação do Decreto nº 8.441, de 29 de abril deste ano, que contemplou o pagamento, aos conselheiros representantes dos contribuintes, de remuneração pela participação nas sessões de julgamento, ao mesmo tempo em que afirmou estarem eles impedidos de advogar contra a Fazenda Pública. A crise tomou vulto quando a questão foi submetida ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) mediante consulta formulada pelo ministro da Fazenda.
Ao responde-la, houve por bem o colegiado do referido órgão, por maioria de votos, estender a restrição prevista no decreto ao exercício da advocacia como um todo, e não apenas às lides em que a Fazenda Nacional figura no polo oposto. Como era de se esperar, esses eventos levaram a uma renúncia em massa de representantes dos contribuintes, que optaram pela exoneração do cargo oficial e preferiram prosseguir no exercício da advocacia, deixando o Carf totalmente paralisado, por absoluta falta de julgadores. Os conselheiros atingidos por essas medidas reclamam da reduzida remuneração oferecida, alegadamente fora dos padrões condizentes com aquela atribuída pelo mercado para um profissional qualificado, com o necessário conhecimento em matéria técnica e complexa como a tributária. Além disso, há protestos contra a proibição de atuar em quaisquer demandas, e não apenas naquelas em que a Fazenda Nacional figure no polo oposto, por restringir o livre exercício profissional.
Os argumentos que suportam esse ponto de vista não são poucos. De fato, a remuneração prevista no decreto, limitada a R$ 11.235,00 ao mês, não se mostra compatível com a remuneração de um profissional com larga experiência na área fiscal. Além disso, proibir a prática da advocacia em contendas nas quais a Fazenda Nacional não integre a lide também parece, à primeira vista, ser um exagero. Apesar de respeitáveis, cabe examinar essas alegações também sob a ótica das autoridades governamentais, e não apenas dos conselheiros afetados pelas recentes normas. Importante compreender que a dinâmica do Carf exige dos conselheiros a elaboração de votos em cerca de trinta processos ao mês. A retenção, por mais de seis meses, de processo distribuído para relatoria pode levar à perda de mandato, nos termos do artigo 45, II, da Portaria nº 256, de 22 de junho de 2009, do ministro da Fazenda, que aprovou o Regimento Interno do Carf.
A propósito, a introdução dessa norma foi extremamente festejada pelos que militam naquela Corte administrativa, pois a ausência de previsão de penalidade não raro tornava o andamento processual comparável à morosidade do tão criticado Poder Judiciário, sobretudo em relação aos processos de menor valor, já que os de maior valor recebiam e continuam recebendo prioridade regimental. Para os conselheiros fazendários, essa tarefa não se mostra de todo extenuante, na medida em que se dedicam exclusivamente a esse expediente. Contudo, para aqueles que advogam, e não apenas relatam e julgam processos no Carf, nos parece ser humanamente impossível dar conta de tamanha carga de trabalho e acumular essa função com a advocacia, fazendo-o com a qualidade desejada.
O trabalho do julgador exige quase sempre o exame de provas constituídas por inúmeros documentos, livros e arquivos digitais, a análise de questões formais e materiais inerentes ao processo, bem como a atualização constante em relação à legislação, doutrina e jurisprudência, a elaboração de votos, e a dedicação integral a extenuantes sessões de julgamento durante pelo menos três dias úteis na capital federal. Convenhamos, não é pouco. Vista dessa forma, a restrição imposta pelas novas regras parece fazer algum sentido, pois a paridade tão reclamada pelos conselheiros contribuintes exige excelência do trabalho, equivalente à dos quadros da Receita Federal, impossível de ser obtida daquele que se vê em meio a tantos afazeres, especialmente dos que não podem prescindir de atividade remuneratória para a própria subsistência.
Aliás, em relação à questão remuneratória que no entender de muitos seria insuficiente para compor o Carf com profissionais de alto nível parece-nos também haver algum equívoco. É que o valor estipulado no decreto corresponde a cerca de 50% da remuneração básica de um auditor fiscal. A solução consistiria em eliminar essa diferença, e se completaria pelo treinamento de profissionais adequados para a função pelas confederações e sindicatos que os indicam.
O que não se pode é a pretexto da existência de falhas nas normas que visam o restabelecimento do respeito ao Carf exigir a volta à situação anterior, que fatalmente levaria ao anacronismo, ao atraso, e à manutenção do velho status, culminando com o total descrédito dessa instituição quase secular, e ofuscando os tantos méritos colecionados ao longo de toda sua existência. É claro que há ideias mais arrojadas do que as ora concebidas para que cheguemos um dia a um modelo mais eficiente, dinâmico e paritário, dentre os quais se destaca o de uma autarquia composta por julgadores concursados (e não indicados), com mandato por prazo determinado, aproveitando-se a estrutura administrativa existente. Isso, contudo, é coisa para o futuro, e para outro artigo.
Vinicius Branco é sócio do escritório Levy & Salomão Advogados e ex-conselheiro do Carf Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.
Fonte: Valor