Corte no orçamento, déficit de Estados e aumento da Dívida Pública foram expressões veiculadas em todos os meios de comunicação para dizer, em outras palavras, que as contas públicas estão, digamos, em situação difícil. Dentre todos os termos técnicos, porém, o que chama atenção é a absoluta ausência de conexão entre o estado das finanças públicas e os níveis de arrecadação tributária. Como amplamente divulgado há pouco menos de um mês, a arrecadação tributária de 2013 bateu todos os recordes históricos. Foram R$ 1,1 trilhão, engordados especialmente pelos programas de recuperação fiscal e, também, pela eficiência da Administração Tributária, cada vez mais munida de tecnologia que viabiliza cruzamento de dados e eleva a qualidade das investigações tributárias.
Ora, não parece haver, aqui, certa incongruência? É sabido que grande parte das receitas do Estado é proveniente da tributação. Como, então, compreender o déficit de muitos Estados, a necessidade de corte no orçamento e a promessa de redução de despesa para viabilizar o superávit primário? A resposta para essa suposta incongruência, a meu ver, parece estar na outra ponta: no gasto público.
Muito fala-se em arrecadação (receita), orçamento (receitas x despesas), mas pouco fala-se da qualidade do gasto público. A pergunta que deveria ser feita diante de notícias aparentemente contraditórias como essas é: o dinheiro está sendo bem empregado? Como estão os níveis de fiscalização das despesas? Há transparência na execução orçamentária, a ponto de viabilizar o controle pelo cidadão?
É importante reconhecer dois níveis a partir dos quais a questão do gasto pode ser abordada. A primeira, é constitucional e abstrata. A Constituição de 1988, visando assegurar garantias sociais mínimas aos cidadãos vinculou receitas tributárias a determinadas necessidades públicas. A figura das contribuições é exemplo evidente disso: o destino da arrecadação de uma contribuição social deve estar claro, expresso e vinculado na lei que a instituiu e muitas vezes já está determinado no próprio texto constitucional. Abstratamente, saúde, previdência, educação, sempre teriam recursos garantidos.
Porém, uma outra forma de abordagem do gasto parte do direito financeiro visto na prática. A questão seria: para onde, efetivamente, o dinheiro foi destinado? Ou seja, dado que há contribuições cuja arrecadação será integralmente (ou quase isso, dada a discricionariedade da União de desvincular 20% das receitas – mas isso é um assunto para outro post) destinado ao atendimento de necessidades públicas enumeradas na Constituição, como o dinheiro foi gasto? Houve construção de hospitais, compra de aparelhos, melhoria do sistema existente? Ou os recursos foram utilizados, basicamente, para o custeio do que se tem? Se a resposta for positiva para a segunda pergunta (como é minha hipótese), temos um problema sério de baixa qualidade do gasto público, em que pese os níveis de arrecadação elevados. Apenas como exemplo, tome-se a situação da Universidade de São Paulo: há poucos dias, o novo reitor anunciou a suspensão, até abril, de novas contratações e início de obras na universidade haja vista que a integralidade do orçamento da USP de 2013 foi consumido pelo pagamento com pessoal. Diante disso, é inevitável perguntar: é esse tipo de gasto que queremos que prevaleça?
A questão é que este controle qualitativo deveria estar, também, acessível ao cidadão comum. É bem verdade que o Senado Federal disponibiliza o acesso aos gastos públicos por meio do sistema Siga Brasil, aberto a quem quiser consultar. No entanto, a alta tecnicidade dos orçamentos e toda burocracia que envolve a execução orçamentária impede que o acesso seja efetivamente livre. Isso somado à baixa cultura de acompanhamento da atividade financeira do Estado – o direito financeiro sequer é matéria obrigatória nos cursos de graduação em Direito – o resultado são informações esparsas e desconexas, que dificultam o perene controle da qualidade dos gastos nos mais diversos ramos da atividade estatal.
As notícias que lemos, portanto, parecem-me estar pela metade. Sem uma reflexão voltada à qualidade do gasto, não temos como produzir debates efetivos sobre as contas públicas e o retorno da tributação aos cidadãos. Direito tributário, direito financeiro e fiscalização orçamentária deveriam andar juntos. Creio que apenas assim teremos a construção de um foro qualificado em finanças públicas, que hoje, infelizmente, praticamente inexiste no meio jurídico.
Fonte: Estadão