Por Luiz Roberto Peroba e Mariana Paiva
No contexto da compra e venda de empresas, uma das principais preocupações do comprador é avaliar se a empresa objeto do negócio possui passivos legais relevantes que possam eventualmente impactar o seu resultado. A complexidade do nosso sistema jurídico e o alto grau de litigiosidade contribuem para que as empresas brasileiras apresentem muitos passivos, de natureza tributária, trabalhista, previdenciária, ambiental, entre outras, já materializados ou que podem se materializar no futuro.
Para se proteger contra o impacto que tais passivos possam causar, o comprador se vale de mecanismos contratuais, como a previsão de que o vendedor será responsável por assumir os passivos relativos ao período passado até a data da conclusão do negócio. Outra alternativa é o chamado “holdback”, por meio da qual o vendedor retém parte do preço de venda em uma conta (“escrow account”), geralmente administrada por um terceiro (agente). Contratualmente, as partes estabelecem que o valor retido somente será liberado após cumpridas certas condições como exemplo, a quitação da dívida tributária, extinção do débito previdenciário etc.
Mecanismos contratuais usados com frequência podem ser objeto de questionamento por parte do Fisco Muito embora esses mecanismos contratuais sejam bastante utilizados na prática, podem ser objeto de questionamento por parte do Fisco. Inclusive, o Fisco tem desconsiderado com maior frequência tais acordos com base em uma interpretação demasiadamente abrangente do artigo 123 do Código Tributário Nacional (CTN), segundo o qual as convenções particulares são inoponíveis ao Fisco.
Um dos questionamentos do Fisco diz respeito à dedutibilidade de despesas para fins do Imposto de Renda (IRPJ). Vale citar um caso recente em que o vendedor assumiu perante o comprador responsabilidade por determinadas dívidas tributárias. No passado, havia sido constituída provisão para tal passivo, tendo sido oferecida à tributação (já que essa provisão deve ser adicionada ao lucro, conforme a lei). Como posteriormente as dívidas foram quitadas, o vendedor reverteu a provisão e procedeu à exclusão da correspondente despesa do seu lucro.
O Fisco glosou a despesa alegando que, por se referir a uma empresa que foi vendida a um terceiro, seria desnecessária e, portanto, indedutível. Ainda, argumentou que, em razão do artigo 123 do CTN, o fato de o vendedor ter assumido a responsabilidade pelas dívidas seria irrelevante. É evidente que o Fisco extrapolou a interpretação do artigo 123 do CTN ao negar a dedutibilidade das despesas incorridas com os passivos da empresa alienada. Tal dispositivo, na sua essência, busca evitar que determinada pessoa, caracterizada como contribuinte ou eleita responsável, abstenhase de cumprir sua obrigação tributária alegando que a responsabilidade pertence a outra.
No caso, o acordo que tratou da responsabilidade sobre os passivos da empresa não alterou de forma alguma o sujeito passivo perante o Fisco, de forma que a dedutibilidade das despesas pelo vendedor não poderia ser impedida com base no artigo 123 em questão, como pretendeu o Fisco. Tanto é que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), órgão máximo de julgamento administrativo, entendeu que os valores pagos para quitar as dívidas tributárias seriam sim despesas normais e necessárias, destacando que esse tipo de assunção de responsabilidade contratual é comum e deve ser admitido pelo Fisco (acórdão nº 1103001.143).
Outro questionamento do Fisco envolve a cobrança do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) na hipótese de holdback do preço de venda. Em muitos casos, o Fisco tenta tributar o ganho de capital integral, exigindo o IRPF sobre o preço de venda retido em escrow, alegando se tratar de efetivo acréscimo patrimonial. Para o Fisco, o fato de o vendedor se responsabilizar por possíveis passivos mediante o desconto ou redução do valor do preço de venda também seria ato inoponível, conforme o artigo 123 do CTN.
Novamente, a sua interpretação foge da realidade, pois não há que se falar em renda auferida pelo vendedor quando ainda há incerteza se o montante depositado será ou não levantado, pois, afinal, está sujeito a uma série de condições futuras. O Carf também já cancelou esse tipo de autuação ao constatar que o valor depositado em escrow somente seria liberado após o cumprimento de certos requisitos (acórdão nº 2202002.859). Nessa situação, não haveria efetiva renda tributável no momento do depósito, sendo que o Fisco somente poderia exigir o IRPF por ocasião da efetiva liberação do montante à pessoa física.
Esses recentes casos ilustram como o Fisco tem reagido diante dos mecanismos contratuais e servem como alerta para que o vendedor e o comprador considerem possíveis desdobramentos tributários no momento de negociar a responsabilidade sobre passivos e definir a forma de pagamento.
Luiz Roberto Peroba Barbosa e Mariana Monte Alegre de Paiva são, respectivamente, sócio e associada da área tributária de Pinheiro Neto Advogados Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
Fonte: Valor