Iniciando a série ‘Diálogos’, José Roberto Mendonça de Barros e Delfim Netto conversam sobre como desacertos na política econômica agravaram as deficiências do País e deixaram o investidor pessimista
Estado: O Produto Interno Bruto, o PIB, teve dois trimestres de retração, o que indica recessão técnica. Estamos diante de uma estagnação ou no início de uma recessão mais profunda?
Delfim: Primeiro queria dizer que é muito bom estar aqui com José Roberto, um dos melhores economistas do País. Então, não tem muita importância a definição. O importante é se isso indica a continuidade do processo de murcha do crescimento. Infelizmente, dois vetores do crescimento – o investimento e a exportação – estão mal comportados para acreditarmos numa recuperação de curto prazo.
Mendonça de Barros: Agradeço as palavras carinhosas. Fui aluno do Delfim…
Delfim: … é por isso que eu sei que você é bom… (risos)
Mendonça de Barros: (risos) Professor, concordo integralmente com o que o sr. disse. Não existe um problema de rolagem de dívida. A inflação não está explodindo. Não há falta de dólares. Tudo que foi fonte de crise tradicional, felizmente, não está acontecendo – sintoma de que melhoramos. Mas, como foi o título de um artigo meu, lenta, suave e gradual foi a forma como o crescimento foi parando. Os números são ruins, o que sugere que temos uma estagnação. Acho que é um caso claro de estagflação. A inflação não é muito alta, mas incomoda. Esse conjunto tirou o crescimento. É um desafio recuperá-lo.
Delfim: O complicado é que você foi tirando das pessoas a convicção de que haveria crescimento. Numa larga medida, o crescimento é um estado de espírito. Só cresce quem acredita que vai crescer. O trabalhador que está comprando a sua casa hoje, ele tem sua capacidade de pagamento esgotada. Houve facilidade de crédito, mas ele está comprimido. Se ele duvida que o emprego vai continuar, o sujeito paga as dívidas e não consome.
Mendonça de Barros: Ele trava.
Delfim: Trava! O empresário é igual. Está com estoques maiores do que gostaria. A taxa de juros está subindo. A política cambial é errática. O que ele faz? Vai para a defensiva. Não investe. Você destruiu a crença de que era possível crescer. Essa crença foi sendo destruída lentamente e confirmada pela redução do crescimento, como se fosse uma profecia que se autorrealiza.
Mendonça de Barros: Exatamente isso: estamos em uma situação em que a expectativa está comandando.
Delfim: Aí é importante dizer: no primeiro ano, a presidente Dilma fez um ajuste.
Mendonça de Barros: É verdade.
Delfim: Ela aumentou a taxa de juros. Aprovou a aposentadoria do funcionalismo público. Tinha criado uma expectativa de que a coisa caminharia. Mas aquilo passou pelo máximo e começou a declinar. Quando ficou claro que haveria redução no ritmo de atividade, para manter o emprego, começou a tomar medidas tópicas. Mas isso causa perturbações no resto da economia – e não mantém o crescimento.
Mendonça Barros: Você não pode violar duas coisas. Uma é a consistência macro (da política macroeconômica, que trata de juros, câmbio, das contas do governo, entre outros). Inconsistência macro é mortal. Demora, mas aparece….
Delfim: Isso mesmo. Não tem como violar as identidades da contabilidade. Pode tentar. Pode dar uma empurradinha. Mas saiba que vai aparecer inflação de um lado e déficit em conta corrente do outro.
Mendonça de Barros: A outra coisa que aparece é do ponto de vista micro (da política microeconômica, que trata da produção das empresas, entre outros). Todo mundo sabe hoje que não adianta ter uma fábrica 100% eficiente do ponto de vista de engenharia, se o transporte na porta destrói essa eficiência….
Delfim: Você está levantando uma questão muito importante. Nós temos brasileiros com indústrias nos Estados Unidos e na China. E temos indústrias francesas, americanas, inglesas aqui. A produtividade no chão da fábrica é praticamente igual – em alguns casos a da brasileira é superior. O problema é o seguinte: quando o caminhão sai da fábrica, ele cai num buraco. Faz quase 40 anos que não se investe em infraestrutura.
Mendonça de Barros: Tem uma outra coisa que eu queria adicionar. Hoje, o sistema tributário está para o Brasil como estava a inflação no início dos anos 90.
Delfim: É verdade.
Mendonça de Barros: Lá atrás ou resolvia a inflação ou a gente ficava pedalando no vazio. Não estou falando de redução de carga, que no primeiro momento é muito difícil, mas ou simplifica essa coisa ou…
Delfim: … mas não simplifica, Zé. A Constituição de 88 quer uma sociedade com igualdade de oportunidades. Tem coisas que parecem utópicas, mas vale a pena perseguir – saúde e educação gratuitas, por exemplo. Por causa desse projeto, sempre vamos ter uma carga tributária um pouquinho maior que a de nossos competidores. Temos uma ambição maior que a deles. Não estamos querendo só crescimento… o pior é que não temos nem crescimento agora.
Mendonça de Barros: Mas essa carga tributária tem que ter ao menos um sistema simples – que não gere tantos custos administrativos e distorções econômicas. Nós ainda exportamos impostos.
Delfim: Mais grave, Zé, é que nos Estados não se devolve o ICMS (o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços pode ser compensado e devolvido às empresas). Conheço empresas que têm retidos nas secretarias de Estado valores equivalentes ao seu patrimônio líquido. Como você sobrevive? Não tem cabimento você reter imposto sobre um sapato produzido em Franca (interior de São Paulo) que vai ser vendido em Frankfurt (na Alemanha). Que esperança tem o alemão de receber um serviço do Alckmin (Geraldo Alckmin, governador de São Paulo)? Se tiver alguma esperança – que é vã – é de que vai receber da Merkel (Angela Merkel, chanceler da Alemanha). Exportar sapato com imposto é um escândalo.
Mendonça de Barros: Isso virou um problema porque tira a racionalidade das coisas. Não tem cabimento fazer um produto entrar no Brasil via Santa Catarina porque um truquezinho fiscal faz com que fique mais barato botar o contêiner no caminhão e trazer para São Paulo.
Delfim: Isso mesmo! Quando estávamos construindo o PIS/Cofins, eu pedi para o Antônio Ermínio (de Moraes, acionista e então presidente do grupo Votorantim) que me fizesse o cálculo de quanto eles gastavam só para preencher a papeleira da prestação de contas que nunca seria usada por ninguém. Chegaram à conclusão que tinham um custo de quase 3% (do faturamento). Além da carga tributária visível, você impõe um custo de 1,5%, 2% sobre as empresas.
Mendonça de Barros: E ainda tem a eterna briga jurídica com as receitas federais e estaduais: é advogado, é parecer, leva 15 anos para resolver e, quando ganha, não recebe. No mundo moderno, esses custos ajudaram muito a parar o crescimento do PIB.
Delfim: Tem mais. Se você pensar no conjunto – municípios, Estados e federação – saem umas dez medidas tributárias novas por dia. Você precisa estar online para acompanhar.
Estado: Esse conjunto de coisas reduziu o PIB potencial do Brasil? A capacidade de o País crescer é menor do que antes?
Mendonça de Barros: Se não resolver isso, acho que não tem como crescer do mesmo jeito que antes.
Delfim: Esse negócio de PIB potencial é um sonho de economista. É uma coisa que a gente sabe que existe, mas não sabe como calcular. Não há a menor dúvida – a menor dúvida – que uma simplificação tributária esconde um ganho de PIB por ano de pelo menos 1%. No Brasil de hoje temos umas coisas fantásticas. Exemplo: nós precisamos flexibilizar o mercado de trabalho. Não estou falando para tirar direito de ninguém. Pelo contrário. É para consolidar os direitos. Temos de permitir que o acordo entre as partes prevaleça sobre a lei – que nem sequer é lei. Hoje o Tribunal Superior do Trabalho não obedece lei nenhuma. Ele faz a lei. Você cria passivos trabalhistas alucinantes.
Mendonça de Barros: Tem também o mito da terceirização. Acham que terceirização é igual a precarização do emprego. Isso até aconteceu no passado, mas não é mais assim.
Delfim: De jeito nenhum!
Mendonça de Barros: Nós evoluímos. E tanto é verdade que os empregadores da agricultura, do setor de serviços cumprem a legislação social de funcionários terceirizados. Mas a lei não é moderna – e sem legislação moderna, não é possível ser moderno. Vou dar um exemplo na minha vertente verde. Um cidadão planta 100 hectares de soja e com essa área não é economicamente viável ter uma colheitadeira. É muito caro. Obrigatoriamente, ele precisa terceirizar a colheita. Oras, o que acontece? Vai lá um fiscal, avalia e o juiz concorda que aquela atividade não pode ser terceirizada. O cidadão vai tomar uma multa por um motivo absurdo.
Delfim: O que acontece é o seguinte: Brasília está a 40 mil quilômetros do Brasil. Eu sei disso porque eu sofri. O lago emite um gás inodoro… (risos)
Mendonça de Barros: …ncolor…
Delfim: … que destrói os neurônios. Você só adquire de volta quando você sai de lá – que foi o meu caso. A gente precisa desconfiar de Brasília.
Estado: Por falar em Brasília, o governo tem um discurso de que o crescimento foi afetado pela crise internacional e foi preciso fazer a opção pela preservação do emprego. Diz também que num próximo mandato não faria ajuste que ocasionasse perda de empregos. Gostaria de ouvir a opinião dos senhores sobre isso.
Delfim: Essa discussão é bizantina. O economista que diz que é preciso desemprego para fazer ajuste é um débil mental. Ainda há pouco, saiu um livro que diz que a economia é prejudicada pela política. Não! Sem a política, não há economia razoável. Com a situação de hoje, vai ter um ajuste. Não vamos ter ilusão. Mas a profundidade e o custo do ajuste vai depender da credibilidade e da coerência macro e da abstinência de ações micro.
Mendonça de Barros: Concordo, professor. Está faltando confiança no futuro. Sem essa variável, fica difícil dizer o que vai acontecer com o emprego. Se houver confiança no futuro, ninguém vai desempregar as pessoas de que precisa para o seu negócio crescer. Acho que um ajuste hoje exige um maior controle do gasto do governo, que seria de alguma forma compensado pelo aumento do investimento privado. Coisa que só será possível com confiança. O que atrairia hoje o investimento privado numa escala maior seriam os projetos de infraestrutura. Adequadamente desenhados, é perfeitamente possível visualizar um retorno bastante decente para o investidor de longo prazo.
Delfim: Veja a grande importância da economia: quando você abre as perspectivas de que a coisa vai caminhar corretamente, o futuro vira presente. Ele se constrói. Temos um conjunto de investimentos com taxa interna de retorno de 10%, 11%, capazes de atrair fundos de pensão do mundo inteiro. Mas você precisa de agências reguladoras críveis. Porque os contratos são abertos a cada 30 anos. O que aconteceu? Aparelhamos demais as agências. Quem vai investir toma muito cuidado. Quando você tem uma agência aparelhada, o investidor exige mais retorno, mais taxa de risco. É maluco. Você pensa que melhora o controle, mas está piorando riscos.
Mendonça de Barros: E, sem investir, o Brasil não voltar a crescer.
Delfim: Você precisa pensar o Brasil sempre 20 anos lá frente, como era do Geipot (Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes, estatal extinta que foi responsável pelo planejamento do setor). O País precisa de bons projetos executivos. Como é projeto no Brasil hoje? Ah é: a ponte. Aí vem um desenho da ponte…
Mendonça de Barros: É o paraíso dos empreiteiros picaretas, porque eles vão pedir aditivo sobre aditivo…
Delfim: O empreiteiro vai lá e faz o próprio projeto. Quem controla? É uma maluquice. Me disseram que nos Estados Unidos é assim. Eu duvido. É como esse negócio da ferrovia. O modelo parece interessante. Só existe na Alemanha. Me disseram: é um modelo muito eficiente. O governo compra tudo e depois vende.
Mendonça de Barros: ... e põe no meio a Valec (estatal envolvida em vários casos de corrupção).
Delfim: É. E colocam a Valec. Falta é alemão para a gente.
Mendonça de Barros: Ou chinês, né, que sabe fazer obra.
Delfim: Lamentável é que nada disso está no processo eleitoral.
Estado: Como vocês veem a ascensão de Marina Silva, com um discurso de que não precisaria dos partidos fisiologistas, digamos assim, e com um tratamento muito especial ao meio ambiente?
Delfim: Tem um projeto generoso. Mas só vamos ver quando ela de fato tiver o poder para fazê-lo. E aí ela vai sentir que o poder tem as suas restrições. O grande defeito de quem não entende o poder é sempre imaginar o seguinte: quando as coisas não funcionam é porque eu tenho pouco poder. Então, eu quero mais poder. Mas as coisas funcionam pior ainda. Preciso de mais poder. O poder como ideia fixa leva ao poder absoluto – e a corrupção absoluta. Ela é uma mulher inteligente. Se eventualmente chegar a ser presidente, vai sentir essas restrições físicas sobre o que conversamos aqui.
Mendonça de Barros: Respeito. Acho que ela tem uma história, uma coisa generosa. Mas como cidadão me preocupa que o programa dela traz a ideia de usar mecanismos de democracia direta, conselhos, que sugerem caminhos alternativos ao tradicional caminho democrático….
Delfim: … que nós sabemos onde termina: é o tipo da coceira, que precisa de mais coceira. O que mata a democracia é o excesso de democracia. Tocqueville (Alexis de Tocqueville, pensador político francês) já sabia.
Mendonça de Barros: A propósito disso, queria trazer uma outra coisa que vai na mesma direção: a compatibilização da obra de infraestrutura com o correto desejo da sustentabilidade. Ainda temos uma enorme distância entre as duas coisas. É um diálogo de surdos. É a mesma coisa que apareceu nos organismos geneticamente modificados, no Código Florestal, em várias áreas. Se os outros países conseguem ter preservação da natureza e ao mesmo tempo fazer os projetos, não é possível que a gente não consiga avançar na mesma direção. Mas, por causa desse diálogo de surdos, o projeto básico de engenharia não é feito, os custo explodem, o prazo explode. Tem que lembrar: demorar demais custa caro.
Delfim: Zé, quando eu era ministro da Fazenda – e isso foi na idade média, nos anos 70, faz 50 anos -, tínhamos que construir uma pequena estradinha ao lado da estrada grande da BR-101, perto de Florianópolis. Ela passava por uma reserva de índios. Em 1970, o Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) fez o projeto original. Era um adendo, para o carro circular fora da estrada. Quando a obra começou, o Ministério Público embargou. Há poucos dias eu soube: esse processo rodou nos últimos 50 anos. Terminou na Casa Civil. Agora, aparentemente, chegaram a um acordo com Ibama e Funai. O Dnit vai fazer outro projeto e executá-lo.
Mendonça de Barros: … projeto que pode atrasar.
Delfim: Se encontrarem um papagaio lá, vai dar confusão. O que eu acho é o seguinte: todos sabemos que a sustentabilidade é absolutamente fundamental. Eu brinco: se o meu neto souber que eu comia sabiá na infância, não olha mais na minha cara. No meu tempo, comer sabiá era uma delícia. O mundo mudou. Era uma estupidez aquilo. A gente aprendeu. O respeito ao meio ambiente é fundamental. Mas adoração é muito ruim.
Mendonça de Barros: Mas, como economista, é confortador que a proposta da Marina do ponto de vista macro seja aparentemente razoável. Não teria nenhuma invenção. É uma coisa muito positiva. O que daria a possibilidade de começar esse arranjo para trazer um crescimento.
Delfim: Eu tenho a maior confiança no Giannetti (economista Eduardo Giannetti, conselheiro de Marina), de forma que, se ele realmente estiver coordenando, ninguém deve ter medo de nada.
Mendonça de Barros: Jantando com o Giannetti há um tempo atrás, eu disse: se há um grupo que tem obrigação de avançar na compatibilização de meio ambiente e projeto de crescimento é o de vocês.
Estado: Armínio Fraga (indicado ministro da Fazenda no eventual governo de Aécio Neves) diz que, com ajustes a partir de 2015, ao final de 4 anos o País poderia crescer 4% ao ano e a taxa de investimento iria a 24%. Ele é otimista?
Mendonça de Barros: Eu não acho que ele está sendo otimista. É possível. Tem o efeito mola. Há crescimento reprimido…
Delfim: O Armínio é um sujeito muito competente. Um sujeito realista. Mas o problema é que nisso que ele está dizendo tem muito “se” – “se” com C cedilha.
Fonte: Estadão