Fabiana Rodrigues, influencer digital na Rocinha, no Rio: “As pessoas têm de tudo aqui: televisão, carro, moto, casa de tijolo; são pessoas com renda”
Valor Econômico | 24/01/20
Os moradores das favelas brasileiras reúnem um poder de consumo de R$ 119,8 bilhões por ano, o que supera a massa de rendimento de 20 das 27 unidades da federação do país. É superior, inclusive, ao de países inteiros, como Paraguai, Uruguai e Bolívia. São 13,6 milhões de pessoas em comunidades, com renda domiciliar per capita de R$ 734,10.
Os indicadores fazem parte da pesquisa “Economia das Favelas”, dos institutos Data Favela e Locomotiva, que foi a campo de 8 a 16 de dezembro em 465 comunidades de 116 cidades. No total, foram entrevistadas 2.670 pessoas de 16 anos ou mais e que declararam-se moradores de favelas.
O levantamento mostra que a maior parte da massa de rendimento das favelas tem origem no trabalho. Dos moradores com alguma renda, 71% declaram ter renda do trabalho (formal ou informal). Também do total, 40% recebem auxílio-desemprego, e 24%, recursos do programa Bolsa Família. Somente 15% vivem com aposentadoria ou pensão.
Presidente do Instituto Locomotiva, Renato Meirelles diz que a pesquisa revela que as favelas formam um grande mercado consumidor, com um universo de pessoas com poder de compra, conectadas à internet e bancarizadas. Para ele, é um mercado ainda subestimado pelas grandes empresas.
“Vemos empresas expandindo para cidades de 7 mil habitantes antes de se apropriar das favelas, que têm mais consumidores”, diz Meirelles, considerado um dos principais especialistas em consumo e opinião pública do país. “Entender as favelas como território aberto ao consumo pode ser um atalho para expansão das empresas brasileiras.”
O levantamento detalhou o perfil de consumo das comunidades, inclusive das novas tecnologias. Seis em cada dez moradores de favelas declararam ter usado a internet para solicitar serviços de transporte (como Uber, 99 e Cabify) nos 30 dias anteriores à pesquisa. Mais 43% usaram o celular para consumir conteúdo pago em sites, e 33%, para solicitar en
Já os bens duráveis seguem no topo dos desejos dos habitantes das comunidades. A pesquisa mostra que 29% dos entrevistados manifestam a intenção de comprar um carro nos próximos 12 meses. Também estão na lista eletrodomésticos (24%), móveis (23%), moto (17%), smart TV (14%), notebook (14%) e smartphone (12%), por exemplo.
Nascida e criada na favela da Rocinha, a maior do Rio, Fabiana Rodrigues diz que a aquisição do carro neste ano é uma possibilidade. O marido tem moto, mas está tirando carteira para automóvel. O desafio é conseguir estacionamento na favela. As ruas são abarrotadas de carros estacionados.
“As pessoas têm uma imagem errada das comunidades e se surpreendem quando entram na Rocinha. As pessoas têm de tudo aqui: televisão, carro, moto, casa de tijolo. São pessoas com renda, que trabalham na zona sul do Rio”, diz Fabiana, que se dedica atualmente à tarefa de monetizar suas redes sociais.
Casada e com dois filhos, Fabiana é uma influencer na Rocinha. Sua página de Facebook, chamada Rocinha em Foco, tem cerca de 110 mil seguidores. Seu Instagram tem 21,1 mil seguidores. Ela divulga notícias sobre a comunidade e faz divulgação do comércio e serviços de dentro e de fora da favela, como para um banco digital.
Tati Damasceno, 28 anos, também compartilha sonhos para compra de bens. Moradora do Vidigal, vizinha à Rocinha, ela formou-se nutricionista e abriu seu próprio restaurante com o pai, que é cozinheiro. Com a renda obtida, espera comprar uma motocicleta neste ano.
“Em nosso restaurante fazemos entregas a pé em diversos pontos da comunidade, que é muito grande. A compra da moto serviria para realizar as entregas”, disse Damasceno, que tem uma renda de R$ 1.000 a R$ 1.500 com o restaurante.
As favelas são repletas de pequenos negócios, como salões de beleza, lojas de roupa, calçados, brinquedos, mercadinhos, farmácias, restaurantes. Para as grandes marcas de varejo, no entanto, existem diferentes barreiras para acessar as comunidades. A mais lembrada delas é a falta de segurança, reflexo do convívio com o tráfico e as milícias.
Na Rocinha, por exemplo, algumas marcas aproximaram-se nos últimos anos. A rede de lanchonetes Bob’s abriu uma unidade na comunidade antes mesmo da pacificação. Em 2013, com a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), a favela ganhou franquias da Cacau Show e da Subway. Com a piora da violência e a crise, só a Subway permanece das trê
Além da insegurança, fatores logísticos desafiam as companhias. Parte das favelas é formada por becos e vielas, sem CEP, impossibilitando serviços de entrega. De acordo com a pesquisa do Data Favela e do Locomotiva, 33% do moradores da favela compram pela internet. Dos que compram, porém, cerca de um terço não consegue receber o produto na porta de
Segundo Meirelles, os moradores acabam indicando algum lugar perto de casa (como a associação de moradores ou agência dos correios) para receber produtos, além de casa de parentes. “Muitas vendas on-line podem ter deixado de ser feitas devido a esse tipo de limitação”, diz Meirelles. “Mas existem iniciativas para contornar o problema.”
Para preencher parte dessas lacunas e aproveitar o potencial de consumo das comunidades, empresas vêm buscando parceiros locais. Foi assim que surgiu, por exemplo, a Favela Log, uma distribuidora de produtos especializada em favelas. Os entregadores são, em sua maioria, ex-detentos e moradores da comunidade.
Segundo Celso Athayde, presidente da Favela Holding, que controla a empresa de logística, o primeiro cliente foi a Procter & Gamble Brazil. Na sequência, a empresa passou a realizar a distribuição de chips da TIM nas favelas. Mais tarde, atuou nas vendas das “raspadinhas”. Hoje, um dos clientes é a empresa de cosméticos Natura.
“Parte das consultoras de vendas direta da Natura é moradora de favelas e não conseguia receber produtos em casa para revender aos clientes. Era preciso marcar em locais fora da comunidade para receber as mercadorias, como postos de gasolina. Não só por causa do roubo, mas também pela dificuldade do ambiente”, afirma Athayde.
Fundada em 2015, a Favela Holding é um braço empresarial da Central Única das Favelas (Cufa), organização social fundada por Athayde e pelo rapper MV Bill. Esse grupo inclui a Data Favela, uma das responsáveis pela pesquisa nas comunidades, além de outras dezenas de empresas de serviços espalhadas pelas comunidades brasileiras.
Oferecer acesso ao poder de consumo das comunidades também virou negócio para o administrador Leonardo Ribeiro, 41 anos. Ele criou em 2016 a Comunidade Door, empresa que hoje conta com 10 mil outdoors de dois metros por um metro instalados nos muros de casas de comunidade. Os espaço já receberam campanhas como Uber, Coca-Cola, Del Valle e Claro.
Ribeiro diz ter faturado em 2018 e 2019, somados, R$ 20 milhões com o negócio e ter gerado renda para aproximadamente 15 mil moradores de favelas. “Temos mapeados os moradores das comunidades para oferecer às marcas segmentação de campanhas, por renda, faixa etária e gênero”, explica o empresário, que fundou a empresa em 2016.
A dificuldade de acessar o consumidor da favela não se limita, porém, ao território físico. Esse público não se identifica com as grandes marcas, diz Meirelles, do Instituto Locomotiva. Para ele, um dos motivos seria o distanciamento cultural e social dos executivos das empresas com os moradores da favelas e do público de menor renda.
De acordo com levantamento, pouco mais de 70% moradores das favelas pesquisadas se consideram muito confiáveis, honestos, felizes e preocupados com os outros, por exemplo. Quando demandados a avaliar as marcas sobre esses mesmos aspectos, menos de 50% atribuem as mesmas qualidades. Por exemplo: apenas 28% consideram as empresas “muito honestas”.
Por outro lado, os habitantes das comunidades atribuem a si com menos frequência a percepção de serem muito inovadores, inteligentes ou ricos. São características que veem com frequência nas marcas. “Favela gosta de samba, rap e funk. Os executivos não entendem disso. Então ainda existe uma grande distância cultural para as favelas”, resume Athayde.