Por Lucinda Pinto
A previsão de um déficit primário de 0,5% do PIB no projeto do Orçamento de 2016 significa que o governo desistiu de lutar pelo ajuste fiscal, o que abre espaço para um quadro de insustentabilidade que aprofundará a recessão, ampliará as chances da perda do grau de investimento do país e provocará desvalorização adicional do câmbio.
Esta é a avaliação do ex-diretor de Política Monetária do Banco Central e atual sóciodiretor da Mauá Capital, Luiz Fernando Figueiredo. “Infelizmente, o governo jogou a toalha”, afirma Figueiredo. Além de agravar a crise atual, o reconhecimento de um déficit antes mesmo de o ano começar revela uma mudança de direção da política econômica, que pode ter consequências ainda mais graves para o futuro. “O que está diante de nós é esta pergunta: o Brasil quer voltar a ter uma trajetória sustentável ou quer se tornar um país como a Grécia?”, diz.
Figueiredo adverte que, em meio a essas incertezas, os empresários precisam rever as críticas que têm feito ao ministro Joaquim Levy. “Acho que os empresários estão sendo infelizes, porque estão batendo no médico, como se ele fosse culpado da doença, em vez de ajudálo”, afirma. “A recessão deste ano, se o caminho não fosse o que o Joaquim tentou trilhar, seria muito pior.” Diante desses riscos, Figueiredo recomenda que o governo reveja essa decisão e lidere uma discussão junto ao Congresso, com o objetivo de evitar o que ele chama de “pior caminho” para o ajuste. “Isso tem que gerar uma discussão sobre um pacto, porque ficar como está é pior para todos”, afirma. “Se o governo entrega uma peça orçamentária prevendo um déficit desse, ele está dizendo: eu desisti, eu não tenho condições de governar.” Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Ao prever um déficit primário para 2016, o governo está reconhecendo que o ajuste fiscal acabou?
Luiz Fernando Figueiredo: O ajuste fiscal, na verdade, praticamente não começou. O que se tentou no último ano foi, dentro da situação possível, fazer um ajuste, mas a verdade se revelou. E a verdade é muito mais dura do que a gente achava. Alguns cortes em cima dos gastos correntes, alguns aumentos da arrecadação na margem, de longe, não são suficientes para fazer o Brasil ter uma trajetória sustentável. Infelizmente, o governo jogou a toalha. Disse: ‘não conseguirei fazer [o ajuste] para o ano que vem’. A verdade está se revelando: o Brasil precisa hoje de reformas estruturais relevantes, principalmente nos gastos obrigatórios. Caso contrário, o Brasil se tornará uma Grécia ou algo desse tipo. O que está diante de nós é esta pergunta: ‘O Brasil quer voltar a ter uma trajetória sustentável ou quer se tornar um país como a Grécia está se tornando?’ Essa é a discussão.
Valor: Quando o governo admite no Orçamento que terá um déficit, o senhor vê uma forma de pressão sobre o Congresso ou realmente ele desistiu?
Figueiredo: Eu não gostei de o governo ter vindo com o déficit porque, para mim, o governo tem que morrer brigando. Eu não vejo entregar déficit e tentar buscar lá na frente o ajuste via novas propostas ou deixando na mão do Congresso como uma alternativa viável. Até porque o Congresso não é quem melhor entende quais são as coisas que estão gerando insustentabilidade no Orçamento do governo federal. Quem tem que liderar o processo é o governo federal. E o governo disse: ‘eu não consigo’. É uma situação de falta de capacidade de governar as finanças públicas.
Valor: Qual é a consequência mais imediata disso? É a antecipação do “downgrade” do país?
Figueiredo: Nunca achei que esse processo de deterioração seria linear. Um processo como esse acontece em degraus. Eu acho que, com o orçamento com déficit, você ampliou bastante não só a crise, mas deixou explícita a insustentabilidade das contas públicas, assim como abriu realmente uma enorme dúvida sobre qual caminho vamos seguir daqui para frente. O senso de urgência se multiplicou com o Orçamento. O país agora não tem mais tempo. Toda a lógica era de que faremos o ajuste, de que o país tem tempo, de que está passando por um momento difícil e irá gradualmente voltar ao equilíbrio porque é saudável. O sinal foi bastante claro: não estamos indo para o equilíbrio, mas estamos ampliando o desequilíbrio, uma vez que o Orçamento já diz que, no ano que vem, não vamos conseguir [fazer algum superávit primário]. Antes de começar o jogo, já dissemos que perdemos. A única vantagem disso é que se amplia o grau de urgência para que as decisões, assim espero, corretas sejam tomadas. “Os empresários estão sendo infelizes, porque estão batendo no médico, como se ele fosse culpado pela doença”
Valor: Como fica o ministro Joaquim Levy nessa situação?
Figueiredo: Eu fiquei muito chateado quando vi uma série de críticas ao Levy porque ele é o médico que está fazendo uma enorme cirurgia no país. Então, a recessão deste ano, se o caminho não fosse o caminho que o Joaquim tentou trilhar, seria muito pior. Do jeito que as pessoas estão vendo, é como se ele gostasse de desemprego. Mas é o contrário. Ele está evitando muito desemprego. Agora, o ajuste gera algum desemprego, que inclusive era uma coisa necessária, mas como uma coisa mais temporária, até que se ajuste tudo que estava fora do lugar. Que ajustes são esses? O ajuste das contas externas; dos preços públicos que estavam muito defasados, gerando uma série de distorções na economia, inclusive um compromisso fiscal muito relevante para o governo; dos bancos públicos, que foram mais para sua realidade e operam em cima de seu capital, e não de capital adicional vindo do Tesouro; da política monetária, muito mais ativa, trazendo a inflação para a meta mais à frente. E um ajuste muito importante é o fiscal, para gerar sustentabilidade da dívida pública. E esse, infelizmente, foi abortado por falta de condição do governo. Todos esses ajustes eram muito mais do que necessários, mas geram como efeito colateral de curto prazo algum sofrimento. O problema é que, como o lado fiscal não está conseguindo fazer o que precisa, você não conseguiu sair do ciclo vicioso, embora muitas coisas estejam melhores e ajustadas.
Valor: O quê?
Figueiredo: Vou citar duas: as contas externas, que estão em trajetória completamente diferente, e a defasagem dos preços públicos, que hoje, em qualquer discussão, é muito marginal. Valor: Diante disso, o senhor acha que existe um risco de o ministro Levy desistir do seu papel? Figueiredo: É difícil dizer. O que infelizmente aconteceu é que a realidade se mostrou pior. E todo o conhecimento, toda a força que ele tinha, não foi suficiente para gerar a trajetória que se imaginava. O governo está entregando um Orçamento que prevê déficit primário de 0,5%, sendo que não faz dois meses que o governo disse que geraria um superávit primário de 0,7% do PIB. É uma diferença de 1,2% do PIB. É muito grande. Então, ele [Joaquim Levy] está batendo na parede, não está conseguindo. Nesse sentido, acho que os empresários estão sendo infelizes porque estão batendo no médico, como se ele fosse culpado pela doença, em vez de ajudálo. Esse tipo de discurso vai custar, para quem criticou, muito mais do que ele imaginava. Em vez de ajudar o setor, vai piorar. Qualquer situação de insustentabilidade da dívida é ajustada, nenhum país acaba.
Valor: Ajusta como?
Figueiredo: Há o caminho bom e o ruim. Por enquanto, estamos trilhando o caminho ruim, que é o ciclo vicioso. Você tem a insustentabilidade fiscal, que aumenta o custo da dívida, a economia não gera confiança, tem menos crescimento e menos receita para o governo. Então, não é só a diferença de 1,2% do PIB. Você vai ter que ficar com o juro alto por mais tempo e crescer muito menos. Tem todos esses outros custos que são muito relevantes. A relação dívida/PIB está perto de 65%. E cada ponto a mais de juro que você tem que manter por causa desse ciclo vicioso custa 0,65% do PIB por ano. Fora o crescimento menor da economia.
Valor: O que mais esse caminho ruim traz?
Figueiredo: Tudo o que estava em um caminho ruim vai um pouco pior. Claro que isso antecipa qualquer decisão sobre o grau de investimento. O governo poderia, no mínimo, ter sinalizado que vai fazer tudo o que pode do lado dele: cortar ministérios, reduzir muitos cargos comissionados, reduzir mais ainda os gastos públicos. O efeito de demonstração é muito importante. Se o governo não der uma demonstração muito clara de que ele está fazendo tudo o que pode e mais um pouco, é difícil que a sociedade vá reagir com simpatia a essa situação.
Valor: O que o sr. imagina que poderia agora ajudar a estancar essa trajetória negativa?
Figueiredo: Uma grande discussão no Congresso, de que o país não pode conviver com déficit primário. Ele tem que conviver com um resultado primário que, ao longo do tempo, estabilize a relação dívida/PIB. E comece a discutir a partir do que isso será possível A solução de aumento de imposto é sempre muito pobre porque você atrasa a discussão correta, que são os gastos que crescem numa maneira exponencial. Tem uma discussão muito errada, que é o seguinte: vou aumentar gastos porque é um país muito carente.
Valor: Mas isso não é um fato?
Figueiredo: É verdade que o país é carente, mas, se o país não for sustentável, ele será ainda mais carente. Quanto mais insustentável, mais injusto, porque quem sofre mais é quem está na ponta, que não tem como se proteger. O gasto social não minimiza isso. Toda vez que o país opta por manter gastos insustentáveis, ele piora a situação de quem mais precisa. Gosto muito da expressão, que é do Marcos Lisboa [diretorpresidente do Insper], que o Brasil é o ‘país da meia entrada’. Todo mundo tem uma pequena vantagem aqui ou ali. Como uma pessoa com 52 anos pode se aposentar? Não existe paralelo no mundo. Um país que permite isso é porque está sobrando dinheiro. Essas coisas têm que ser enfrentadas. Senão, o país vai virar uma Grécia.
Valor: O que significa virar uma Grécia? É ter problema de solvência?
Figueiredo: De solvência, não. Mas você acaba resolvendo o problema via inflação. Você passa a ter inflação muito alta, que é o pior imposto porque afeta quem mais precisa. Na época da inflação muito alta, quando veio o Plano Real, as pessoas tiveram aumento da renda real de 30% de um mês para o outro, quando a inflação caiu. Então, é dizer que pode tirar 30% da renda das pessoas que mais precisam. Estamos indo para esse caminho. Essa discussão precisa começar. “Se o governo entrega um Orçamento prevendo um déficit desse, diz: não tenho condições de governar”
Valor: Mas com quem está a bola dessa discussão? É com o Congresso?
Figueiredo: A bola tem que estar sempre com o Executivo, que é quem, no fim das contas, executa o Orçamento, tem que tomar cuidado com a sustentabilidade fiscal. Claro que é um trabalho a ser feito com o Congresso, que tem que aprovar isso. O Congresso representa a sociedade na discussão do que fazer, mas a discussão tem que ser liderada pelo governo. Agora, se o governo entrega uma peça orçamentária prevendo um déficit desse, ele está dizendo: eu desisti, eu não tenho condições de governar.
Valor: Nesse cenário, o impeachment, uma troca de governo, está na pauta?
Figueiredo: Eu não entendo e não gosto de discutir nada sobre essa questão. Mas que aumentou a intensidade da trajetória da insustentabilidade fiscal, não há dúvida. Se a LDO sair com déficit de 0,5% do PIB, a gente escalou outro nível de insustentabilidade.
Valor: Isso gera o risco de o Banco Central voltar a subir juros?
Figueiredo: Essa situação não é para aumento de juros, de jeito nenhum. Nosso problema hoje é fiscal. Usar política monetária para isso é um erro. Aumentar os juros só vai aumentar o custo dessa história. Veja que a dívida da Grécia é muito maior, mas o custo que o Brasil paga por sua dívida já é como o da Grécia, porque o juro é muito mais alto.
Valor: E sobre o câmbio? Essa deterioração do ambiente local pode gerar um fluxo de saída mais forte que leve o BC a mudar sua estratégia?
Figueiredo: Acho que o BC tem que fazer o que já faz. Ele tem uma postura mais neutra. Quando rola 100% [do vencimento de contratos de swap cambial], ele está mais neutro no mercado. Um país que tem uma trajetória insustentável tem que ter um déficit em conta corrente menor. A taxa de câmbio já está nos levando a um déficit em transações correntes saudável, da ordem de 2% a 2,5% do PIB. Acontece que um país que está nessa trajetória de insustentabilidade que eu comentei pode precisar de um déficit menor do que esse. E, por isso, a taxa de câmbio pode ter que subir mais. Num país mais endividado, as pessoas vão financiar menos e, portanto, suas necessidades têm que ser menores. É aquela história: país ruim tem taxa de câmbio mais depreciada do que de país bom. Se tivéssemos uma situação em que caminhássemos para um superávit primário que, ao longo do tempo, levasse à relação dívida/PIB de equilíbrio, a taxa de câmbio já estaria num nível muito razoável. Mas o sinal que a gente recebeu não é nessa direção. Então, a resposta do mercado é de alta do dólar. Não tem nada mais natural.
Valor: Dada essa situação, recriar a CPMF teria sido melhor do que admitir um déficit?
Figueiredo: O que eu prefiro: cair do precipício ou ficar um pouco mais longe, mas ainda caminhando na direção do penhasco? Claro que eu prefiro a segunda alternativa. A CPMF é uma solução? Não, ela é um remendo que cria uma ponte para um governo que tenha mais popularidade, mais capacidade de enfrentar os problemas de desajustamento das contas públicas. Sem dúvida, a CPMF é uma alternativa melhor que o déficit primário. Mas o aumento da carga tributária não enfrenta o problema, só joga para frente, mas é mais razoável do que estar já em uma situação de déficit.
Valor: Com que cenário o sr. trabalha para câmbio e PIB?
Figueiredo: É muito difícil dizer um número para os ativos porque já estamos numa situação de ‘overshooting’ para vários deles. Esse prêmio é maior ou menor dependendo do que a gente conseguir entregar do lado fiscal. Se o lado fiscal mostrou mais fragilidade, claro que os ativos vão se mexer. Se o governo entregar o Orçamento com déficit, a taxa de câmbio pode ir muito além do que está hoje. Mas, se houver conscientização de que isso não pode acontecer, daí a coisa muda de figura. O sinal dado é muito ruim. Para você ter uma ideia, o nosso número para o PIB por causa do dado do segundo trimestre saiu de 2,20% para 2,80% este ano e, para o ano que vem, para uma queda acima de 1%. Mas isso foi antes de sair essa informação do Orçamento. Agora, é difícil dizer, porque não me parece que a coisa possa ficar dessa maneira. Isso tem que gerar uma discussão sobre um pacto porque ficar como está é pior para todos.
Fonte: Valor