Por Mario G. Schapiro e Diogo R. Coutinho
Passada a euforia recente, o país voltou ao impasse e habitual cenário de desarrumação de décadas passadas. No epicentro da crise está a Petrobras e na raiz de suas dificuldades, para além de um caso de polícia, há entraves institucionais que refletem as limitações de sua governança e da disciplina jurídica das estatais de modo geral. Propostas parlamentares têm procurado constituir uma “Lei de Responsabilidade das Estatais”. Reunidas no Projeto de Lei do Senado nº 555/2015, elas estabelecem um novo marco normativo para empresas públicas e sociedades de economia mista.
A iniciativa vem ao encontro dos anseios da sociedade, cansada de ver suas estatais envoltas em brumas que comprometem a transparência, impedem o controle democrático e favorecem políticas questionáveis. Isso para não falar, claro, dos desvios, dos sobre preços e das licitações viciadas que envolvem empresas federais, estaduais e municipais há muito.
A agenda legislativa apresentada traz avanços: novas regras de contratação de dirigentes para evitar o aparelhamento, mecanismos formais de controle e prestação de contas e dispositivos no campo da governança corporativa para proteger acionistas minoritários.
O estatuto das empresas estatais não pode ser apenas uma lei de responsabilidade, voltada ao controle e à transparência Além disso, os projetos em debate propõem modificações relevantes na estrutura dos conselhos de administração, criando, por exemplo, a figura de um membro independente dos interesses do governo, que é o controlador das estatais. Preveem, ainda, arranjos internos de auditoria estatutária e mecanismos de compliance, com a finalidade de assegurar a conformidade das decisões tomadas internamente em relação às normas vigentes. São, enfim, medidas de controle que, se bem sucedidas, podem favorecer uma atuação menos dependente das oscilações políticas de curto prazo, que caracterizam parte expressiva da competição partidária eleitoral.
As empresas estatais, porém, merecem mais. As proposições apresentadas traduzem, de modo geral, uma agenda negativa, uma vez que são mais voltadas a restrições e constrangimentos. O estatuto das empresas estatais precisa ir além e não pode ser apenas uma lei de responsabilidade, um conjunto de normas voltado ao controle e à transparência dessas empresas.
Tampouco deve almejar equiparar completamente as estatais às empresas privadas, como se tivessem a mesma finalidade ou função econômica. Para fazer jus à Constituição e se mostrar consistente com nossa variedade de capitalismo, a lei das estatais deve também ser um marco normativo que lhes dê capacidades habilitadoras. Isso porque tais empresas se ressentem de mecanismos que favoreçam uma atuação legitima e efetiva de longo prazo, bem como a implementação de políticas públicas setoriais, no curto e no médio prazos.
Para isso, importam não apenas os freios e contrapesos, mas principalmente arranjos jurídico institucionais que orientem suas ações para resultados exitosos. Se a transparência e o controle são temas incontornáveis, há outros assuntos que merecem mais atenção. É o caso da relação entre interesses privados, interesses do governo e os objetivos de política pública das estatais. As respostas que vêm sendo oferecidas pelo direito brasileiro nesse campo seja nas leis, seja na doutrina ou na jurisprudência pouco colaboram para desvendar com clareza qual é o mandato das estatais e qual a extensão de seus compromissos públicos. Até agora legisladores e juristas contentaram se em afirmar que elas devem atender ao interesse público, o que, convenhamos, é muito pouco.
Na falta de parâmetros mais claros, vêse, por vezes, atuação excessiva dos governos, que ao controlarem as empresas, desviam nas de seus objetivos de longo prazo. É o caso do congelamento de preços praticado pela Petrobras como forma de conter a inflação crescente, uma política estranha ao seu objeto. Em outros casos, as estatais são tolhidas de executar suas políticas e se transformam em agentes quase privados, encarregados de pagar altos dividendos para seus acionistas.
É o caso da Sabesp, que não reduziu a contento a dependência do sistema Cantareira e manteve o pagamento de dividendos anuais em percentuais superiores aos estabelecidos em seu estatuto. As empresas estatais, é bom lembrar, atuam na normalidade econômica mas também, de forma anticíclica, nos períodos de crise, que costumam ser frequentes em países em desenvolvimento.
Olhando por cima das nuvens tempestuosas do presente, o futuro estatuto das estatais deve permitir que a exploração direta da atividade econômica pelo Estado (art. 173 da Constituição) não fique presa a amarras que, no limite, podem impedir a própria ação estratégica que lhes dá sentido.
O objetivo de incrementar as capacidades técnicas (efetividade) e políticas (legitimidade) das estatais não apenas permite dotá-las de mais e melhores condições de ação, como também permite melhor combinação dessas empresas com outros instrumentos, como a regulação setorial, o fomento, as concessões, as parcerias público privadas, as privatizações e o estímulo à concorrência e aos investimentos privados. Para tanto, é preciso recuperar a capacidade de planejar o futuro, desmantelada no Brasil ao longo das última décadas.
O planejamento democrático, desafio institucional de grande monta, é peça chave para atribuir missões às estatais, dando-lhes, com isso, parâmetros e metas concretas para construir e desenvolver tais capacidades A nova lei das estatais deve, em resumo, combinar controle, transparência e publicidade com mecanismos que as integrem a um projeto mais amplo, assegurando margem de manobra para sua atuação efetiva.
Mais que uma agenda negativa, as estatais e o país clamam por uma agenda positiva.
Mario G. Schapiro e Diogo R. Coutinho são, respectivamente, professores de direito econômico da FGV Direito SP e da Faculdade de Direito da USP Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
Fonte: Valor