Economistas não preveem pane em um curto prazo, mas supermercados pedem consumo consciente para evitar desabastecimento
Prateleiras vazias, filas nos caixas, carrinhos lotados e brigas por produtos em falta. Assim é descrito o cenário dos supermercados de alguns países que já foram absorvidos pelo pânico do coronavírus – um cenário que começa a fazer parte de cidades grandes do Brasil, como São Paulo. Apavoradas com a pandemia, populações correm aos estabelecimentos para estocar, principalmente, produtos de limpeza e alimentos.
O papel higiênico foi um dos primeiros itens a desaparecer na Espanha e em Portugal. Em um vídeo divulgado pela emissora russa Russia Today, duas pessoas se agarram a um pacote de rolos entre corredores esvaziados. Nos Estados Unidos, uma foto nas redes sociais mostra produtos em falta em um supermercado no estado de Virgínia. O presidente Donald Trump chegou a pedir, nesta semana, que os americanos comprem “um pouco menos”, e na quarta-feira 18 ativou uma lei que permitirá a interferência do Estado na produção do setor privado.
No Brasil, o aumento da demanda por álcool em gel preocupa fornecedores. Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec), o faturamento das vendas de álcool em gel, em 2020, poderá superar até 10 vezes o valor registrado em 2019, saindo de 100 milhões de reais no ano passado para 1 bilhão de reais. Porém, a Associação coloca dúvidas sobre a disponibilidade da matéria-prima essencial para a produção do item, que está em falta no mundo todo.
O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) nega que a situação de desabastecimento esteja chegando no Brasil. Na terça-feira 17, o porta-voz da Presidência da República, Otávio Rêgo Barros, afirmou que “não há nenhum tipo de preocupação por parte do Mapa nesse sentido”, mas a pasta se antecipa com medidas preventivas. A Anvisa, por exemplo, lançou no dia seguinte um edital para identificar possíveis ameaças de redução de ofertas de produtos essenciais.
Os supermercados já expressam preocupação com a corrida dos brasileiros às compras. Com 900 lojas em São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, a rede de supermercados Dia informou que, para garantir o abastecimento, equipes dos centros de distribuição têm trabalhado em horário estendido, com intercâmbio e revezamento de profissionais entre as unidades conforme as demandas por região. Mas a companhia apela por consciência dos consumidores.
“A rede Dia reforça o pedido para um consumo consciente por parte dos clientes, para que toda a população consiga ter acesso a itens de primeira necessidade, especialmente alimentos e artigos de higiene e limpeza”, afirmou a empresa, procurada por CartaCapital.
A rede Extra foi à televisão para comunicar que suas lojas permanecerão abertas e que foram acionados fornecedores para garantir a reposição de produtos. Mas o pedido de consciência também se fez presente, ao fim da nota: “É preciso que cada um faça a sua parte, mantendo sua rotina de compras sem exageros, para que haja disponibilidade de produtos para todos”.
Os supermercados Pão de Açúcar também publicaram nota de alerta: “Alguns de nossos produtos podem ter estoque limitado e, em caso de falta, poderemos substituí-los por similares ou de qualidade superior. Eventualmente, suas compras podem sofrer atrasos”.
A rede restringiu a compra de uma lista de cerca de 30 produtos para evitar o desabastecimento, como álcool em gel (duas unidades por pessoa), arroz (3 unidades de 5 kg por compra), feijão (3 unidades de 1 kg por compra), além de farinha, leite, papel higiênico, sabonete, desinfetante, água sanitária, luvas e sacos de lixo, entre outros.
Em parecer divulgado na quinta-feira 19, a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) afirmou que o setor supermercadista registrou somente a falta de álcool em gel. A ausência de outros itens na gôndola se deve à crescente demanda nas lojas, ou seja, “um problema de reposição”. O setor também tem disponibilizado horários diferenciados para pessoas acima de 60 anos, informa a Abras.
Mestre em Economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), David Deccache acredita que a hipótese de desabastecimento, por enquanto, está fora de cogitação. Ele afirma que há uma capacidade ociosa gigante na indústria, que é capaz de absorver a demanda.
“Qual o cenário agora? A gente tem, por um lado, uma capacidade ociosa muito grande da indústria e altos níveis de estoque. Então, se houver uma pressão de demanda por conta desse pânico inicial, há como atendê-la com a expansão de oferta e com os estoques acumulados”, explica ele.
No entanto, tudo depende de uma possível evolução aguda da pandemia no Brasil, acompanhada do fechamento de fábricas e do aumento do pânico. Para Deccache, o panorama de desabastecimento tem maior relação com uma situação dramática do coronavírus do que com uma análise puramente econômica. Nada disso pode ser respondido sem o esclarecimento das recomendações sanitárias do governo que estão por vir, no âmbito da produção e circulação de mercadorias.
“Vamos supor que o cenário do coronavírus no Brasil seja pior do que está ocorrendo no mundo e que a evolução exija medidas mais drásticas, como o fechamento das próprias fábricas, uma paralisação mais generalizada da produção. Isso pode gerar pressão de demanda forte que, por falta de gente para trabalhar e distribuir, sim, pode gerar uma pane no sistema de oferta”, avalia. “Há uma incerteza muito grande. A evolução do vírus é discrepante entre os países, e o governo federal não é claro em relação às medidas [sanitárias] que serão adotadas, o que deixa o debate mais nebuloso.”
O doutor em Economia de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) Renan Gomes de Pieri também não enxerga um cenário de desabastecimento a curto prazo. Na mesma linha de Deccache, Pieri diz que, com a crise prolongada desde 2015, as indústrias ganharam maior capacidade ociosa e têm potencial de aumentar a produção agora. Num momento em que as pessoas correm aos supermercados por medo, é possível observar, de um dia para o outro, a falta de produtos essenciais, mas ao decorrer do dia isso é normalizado.
Mas esta análise, ele frisa, é uma fotografia do momento atual. A depender da velocidade e do alcance da pandemia, a contaminação generalizada de trabalhadores rurais e da indústria pode mudar o cenário. Hoje, nada indica este quadro, mas um eventual avanço catastrófico, imprevisto até agora, não descarta situação de desabastecimento.
“A quarentena no caso de pessoas não infectadas é uma escolha difícil para as empresas. O país não pode ficar sem suprimentos”, diz economista.
E a campanha para as pessoas ficarem em casa? Com a pandemia, entidades e meios de comunicação pedem para que os brasileiros, caso possam, resguardem-se em suas residências para não potencializarem a transmissão. Isso não pode diminuir o quadro de funcionários nas fábricas? Para Pieri, a escolha de afastar trabalhadores sem sintomas é um dilema, porque, nos setores essenciais, o fechamento faz contraste com as demandas sociais.
“A quarentena no caso de pessoas não infectadas é uma escolha difícil. Uma empresa que reduzir as suas atividades vai ter prejuízos, muitas não vão sobreviver a esse período. Em relação aos produtos de primeira necessidade, a gente não deve observar os funcionários em casa. As empresas deverão adotar medidas sanitárias, mas em todos os países que tiveram quarentena as companhias trabalharam. O país não pode ficar sem suprimentos”, examina o economista.
Um dos focos para conter a pandemia, portanto, deve ser a assistência financeira do governo aos trabalhadores informais, para convencê-los a não saírem de casa, avalia Pieri. Sem renda, esses brasileiros se veem obrigados a irem à rua para prestar serviços e pagar as contas. No caso dos supermercados, as autoridades públicas também podem investir em medidas para impedir a falta de produtos perecíveis, que dependem de uma logística de entregas diárias.
Além disso, é necessário criar campanhas de conscientização dos consumidores e evitar as “supercompras” para estocagem.
“É uma falta de solidariedade, porque é ruim para todo mundo. Se eu estoco toda a quantidade de álcool em gel, não estou mais seguro. Essa é uma doença que, quanto mais infectados houver ao meu redor, maior é a chance do meu contágio também. Então, não adianta só eu estar protegido. E se as pessoas estocarem comida, vai se criar um movimento maior de gente procurando comida nos estabelecimentos e se infectando nas ruas. Quanto mais você estoca qualquer coisa, mais você aumenta a chance de circulação do vírus”, diz Pieri.
Fonte: Carta Capital