[:pt]A contribuição do governo federal contra a crise [:]

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Por Guilherme Araujo

Este artigo tem o objetivo de apresentar algumas considerações contextuais que envolvem a criação da nova CPMF, considerando, especialmente, o regime constitucional para criação de tributos. Já é lugar comum entre os estudiosos do direito tributário apontar que o Sistema Constitucional Tributário brasileiro figura entre os mais desenvolvidos e completos do mundo.

Não se trata do emaranhado de regras tributárias, mas da sua organização constitucional, que reparte rigidamente a competência para a tributação entre a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal e estabelece importantes princípios e garantias, tudo dentro dos conceitos de República e da Federação. Toda essa modernidade constitucional, no entanto, não tem sido adequadamente aplicada e a pretensão de ressurreição da CPMF é prova disso.

A sociedade imagina estar pagando tributo vinculado a um fim e, na verdade, paga apenas mais um “imposto” A competência para a instituição de tributos é constitucionalmente repartida entre todos os entes federados brasileiros, cada qual com impostos que lhes são próprios, veja­ se, por exemplo, o ISSQN para os municípios, o ICMS para os Estados e o IR para a União.

Esse sistema de repartição de competências, no entanto, não é suficiente para alavancar o desenvolvimento nacional uniforme. Veja­ se a situação dos Estados menos ricos da federação: se a sua carga tributária diminui, o capital privado é atraído, mas pouco arrecada; se a carga tributária não é reduzida, o Estado não se torna atraente para a riqueza particular e também não arrecada. Foi para ajustar essa distorção que a Constituição de 1988 criou regras de repartição do produto da arrecadação tributária entre os entes federados, com a participação de uns na receita arrecadada por outros.

Além disso, à União federal foi atribuída a competência para criar qualquer imposto inexistente na Constituição, cabendo a sua repartição (20%) com os Estados. Foram criados, ainda, fundos de desenvolvimento regionais. O Sistema de tributação por impostos, portanto, é, ao mesmo tempo, racional, rígido e participativo. Essa organização e rigidez, contudo, tem sido infringida pela má interpretação doutrinária e jurisprudencial atribuída à competência exclusiva da União para a criação de contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesses de categorias profissionais ou econômicas.

À União é possível, por simples lei ordinária, criar qualquer tipo de imposto ­ chamado de contribuição ­, já previsto ou não na Constituição Federal, sem necessidade de repartição com os demais entes federados, desde que a sua receita seja previamente vinculada a uma finalidade. Resultado disso é que, acompanhando o noticiário brasileiro, percebemos apenas notícias relacionadas a contribuições, ao invés de impostos. As contribuições previdenciárias (patronal, SAT, Terceiros, CPRB), Cide, PIS, Cofins, Contribuição adicional ao FGTS e, agora, CPMF, são contribuições e representam a esmagadora maioria da arrecadação federal.

A falta de limites reconhecidos para a instituição de contribuições permite à União abandonar a majoração/criação de impostos para que sejam criadas apenas contribuições, que não serão repartidas com Estados e municípios, em nítida fraude ao pacto federativo. A superpotência tributária da União, entretanto, não se desenvolve a custo zero. A principal diferença reconhecida entre um imposto e uma contribuição é a destinação do produto da arrecadação da contribuição, ou seja, ao ser criada, o produto da sua arrecadação já está destinado a um determinado fim, que deverá ser sempre respeitado.

O grande volume da arrecadação de contribuições torna o caixa da União altamente vinculado, sem liberdade para gastos. A nova CPMF será, inicialmente, vinculada ao pagamento de benefícios previdenciários. Com o caixa altamente vinculado, outra manobra constitucional é praticada pela União para a liberação das suas receitas. Recorrentemente são promulgadas emendas constitucionais autorizando a desvinculação das receitas da União (DRU). Assim, as contribuições são criadas para um determinado fim, mas usadas para outros.

Atualmente, tramita no Congresso Nacional a PEC 87/2015 que determina a renovação do regime de desvinculação, autorizando a União a utilizar para quaisquer fins de 30% das suas receitas vinculadas, inclusive aquelas destinadas à seguridade social (previdência, saúde e assistência social) e para fundos de desenvolvimento regionais.

Veja o absurdo do qual falamos. A União pretende a volta da CPMF para cobrir supostos rombos previdenciários, mas, ao mesmo tempo, submeteu ao Congresso proposta de emenda para retirar dinheiro dos cofres da própria previdência. Entendemos que essa rasa reflexão demonstra a inconstitucionalidade da conduta da União. Um drible é aplicado em Estados e municípios, com a criação de contribuições ao invés de impostos. Depois de garantir as suas receitas (vinculadas), as emendas de DRU liberam o seu uso, tornando-­as verdadeiros impostos irrepartíveis.

A sociedade, por sua vez, imagina estar pagando tributo vinculado a um fim (à previdência, por exemplo), quando, na verdade, paga apenas mais um “imposto”. A falta de respeito à Constituição é grave e piora com a suposta transitoriedade da nova CPMF. Essa transitoriedade teria o condão de amenizar a repulsa da sociedade ao novo tributo, fazendo o contexto de fraude constitucional também parecer um pouco mais leve. Mas transitoriedade? Em sua última criação, inicialmente por dois anos, a CPMF durou 10.

A contribuição adicional ao FGTS criada pela Lei Complementar nº 110/2001 para reparar os efeitos dos planos econômicos em contas de FGTS, de acordo com a própria Caixa Econômica Federal, já cumpriu a sua finalidade. Deixou de ser cobrada? Não. Todos esses fatos evidenciam o abuso da União no uso da sua competência para a criação de contribuições, o que deve ser reconhecido como fraude ao pacto federativo, já que lhe atribui superpotência financeira, em detrimento de Estados e municípios. Se aprovada, a nova CPMF será apenas mais um exemplo dessa inconstitucional conduta.

Guilherme Peloso Araujo é advogado, sócio da Simões Caseiro Advogados e mestre em Direito Tributário pela PUC­SP.

Fonte: Valor

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