A isenção de impostos sobre absorventes menstruais é a nova luta feminista

Absorventes são itens básicos da higiene das mulheres. Porém, acredite, só no Brasil, 26% das meninas entre 15 e 17 anos não têm acesso a eles. Nos EUA, país que abriga o epicentro da discussão, a batalha é pela isenção dos impostos estaduais sobre o produto. No mundo inteiro, ativistas seguem o mesmo caminho e tentam condições mínimas de dignidade para o período menstrual

A advogada norte-americana Jennifer Weiss-Wolf descobriu sem querer a causa que iria mudar a sua vida — e a de muitas mulheres. Horas após a festa de Ano-Novo de 2015, depois de publicar no Facebook suas fotos fantasiada de Mulher-Maravilha, viu um post que a fez pensar em um tema inédito. Uma mãe e suas filhas estavam pedindo doações de absorventes para um centro de assistência. “As pessoas nem acreditam que para uma parte das mulheres esse item é artigo de luxo. Foi o que aconteceu comigo quando vi o post. O bom é que, comparado a outros problemas contra os quais nós feministas lutamos, esse tem solução mais simples”, diz a Marie Claire a vice-presidente de desenvolvimento do Brennan Center for Justice da Faculdade de Direito da Universidade de Nova York.

A partir dali, Jennifer não parou de desenvolver iniciativas para que os absorventes sejam mais acessíveis para todas. Ainda que estejam longe de ser os itens mais caros de higiene, o preço é uma barreira, mesmo em países ricos como os Estados Unidos. Para meninas e mulheres pobres — 12% do população feminina mundial, segundo a ONU Mulheres —, em situação de rua ou presidiárias, esse drama mensal leva ao uso de materiais pouco seguros para conter o sangramento. As consequências aparecem em infecções e na dificuldade para frequentar lugares públicos, o que as atrapalha para estudar e trabalhar.

Coube a Jennifer batizar esse movimento, que de tão ignorado nem tinha nome até então. Chamou-o, em inglês, de “menstrual equity” ou “period equity” — em português, igualdade menstrual. Também escreveu o livro que se tornou uma espécie de manifesto, “Periods Gone Public: Taking a Stand for Menstrual Equity” [Menstruação tornada pública: uma posição sobre a igualdade menstrual, em tradução livre, sem edição no Brasil]. Sua principal bandeira para melhorar o acesso é garantir a isenção de impostos para o produto. Essa conquista já aconteceu em países como Quênia, Canadá, Índia, Malásia e Austrália, mas, nos EUA, 33 dos 50 estados ainda taxam os absorventes. Para pressionar os políticos a mudarem o quadro, Jennifer criou um abaixo-assinado (taxfreeperiod.com) que será levado à Justiça no Tax Day (Dia do Imposto) de 2020. Em 15 de abril, apresentará o documento que afirma que cobrar das mulheres um imposto por uma necessidade biológica é um desrespeito à Cláusula de Proteção Igualitária da Constituição.

Graças ao trabalho da advogada, além da ação nos EUA, 2020 também traz novidades para a Alemanha nesse campo. Em consequência de protestos liderados pelas ativistas Nanna-Josephine Roloff e Yasemin Kotra, sob orientação de Jennifer, desde 1º de janeiro os absorventes deixaram de ser considerados por lá artigos “de luxo”. Passaram à classificação de “necessários à vida cotidiana”, na qual já estavam itens como pães, flores, livros e até moedas colecionáveis — veja só.

NA PONTA DO LÁPIS
No Brasil, faltam dados sobre a “precariedade menstrual” — outra expressão usada para designar o problema. Uma pesquisa online da marca Sempre Livre com 9.062 mulheres dá pistas da situação: na faixa de 12 a 14 anos, 22% dizem não ter acesso a produtos confiáveis relacionados à menstruação porque não têm dinheiro ou porque não são vendidos perto de casa. Na faixa de 15 a 17 anos, o percentual sobe para 26%. Entre 18 a 25, cai para 19%.

Segundo o Impostômetro, mantido pela Associação Comercial de São Paulo, o absorvente tem tributação média de 34,48%, o que significa que mais de um terço do valor pago por nós vai para as taxações. Entram na soma PIS, COFINS (ambos federais) e ICMS (estadual). Existe apenas isenção de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), uma medida aprovada em decreto em 2016. Por ser um decreto, porém, o benefício pode acabar revogado.

Para dar mais garantia a essa isenção, o deputado federal André Fufuca (PP-MA) tem o Projeto de Lei 3.085/2019, que pretende zerar o IPI de absorventes. Acontece que, se aprovada, na prática, essa lei não diminuiria o preço que já pagamos hoje, apenas nos protegeria de possíveis mudanças na isenção de IPI. Já para PIS e COFINS as últimas notícias que pareciam promissoras pararam em 2013. Naquele ano do governo Dilma, a Medida Provisória nº 609 pretendia reduzir a zero a alíquota desses dois tributos para produtos da cesta básica, entre eles itens de higiene como absorventes, escovas de dente e fraldas descartáveis — colocando-os numa lista em que já estão, por exemplo, enxaguantes bucais, pastas e fios dentais, sabonetes e papel higiênico. Mas essas mudanças acabaram vetadas pela presidente. Foi-se então a chance de os absorventes ficarem 9,25% mais baratos, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec). “É questão de conceito. É uma questão de acharem [os governantes] que é um produto especial então merece um tratamento especial. É preciso ter um lobby para ver um produto ser escolhido para isenção”, analisa Marcel Solimeo, economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo.

QUESTÃO DE LEI
Enquanto os preços penalizam as mulheres mais pobres, alguns projetos de lei no Brasil propõem a distribuição gratuita. Um deles foi aprovado em junho no município do Rio de Janeiro. De autoria do vereador Leonel Brizola Neto (PSOL), prevê que absorventes estejam disponíveis de graça para alunas da rede municipal em máquinas nos banheiros das escolas. A ideia, conta o autor, surgiu depois de assistir com a filha Marina, de 14 anos, ao documentário de curta-metragem Absorvendo o Tabu, vencedor do Oscar em 2019. O filme indiano, disponível na Netflix, retrata uma comunidade rural que é transformada com a conquista de um aparelho para produzir absorventes. “Parti do princípio de que é uma questão de saúde pública, consegui conscientizar conversando com cada vereador. Abraçaram o projeto, que teve apoio unânime aqui, até do [Carlos] Bolsonaro, e de outros nomes da extrema direita”, afirma o político, que na defesa do projeto argumenta que agentes de saúde das favelas cariocas observam que as meninas chegam a perder 45 dias de aula por ano por não terem produtos adequados quando estão menstruadas. Apesar de aprovada há meio ano, a lei não virou realidade. A Marie Claire, a Secretaria Municipal de Educação informou que “serão verificados os procedimentos administrativos necessários à implementação da lei”. O vereador diz que pretende acionar o Ministério Público se o atraso persistir.

A ideia de Leonel é a inspiração para outro projeto de lei, da deputada federal Marília Arraes (PT-PE), que quer tornar a distribuição de absorventes uma prática em todas as escolas públicas para alunas dos anos finais do ensino fundamental e do médio. “Muitas mulheres não têm o dinheiro para gastar ou abrem mão porque não querem pedir para quem cuida da casa. Pela forma com que a mulher foi socializada historicamente, é do seu perfil abrir mão de itens para ela própria pensando na família quando tem que fazer escolhas”, justifica a autora do PL 4.968/2019. Um projeto de lei de iniciativa popular, que tem como relatora a senadora Zenaide Maia (PROS-RN), reuniu mais de 35 mil assinaturas e propõe a distribuição em postos de saúde para mulheres de baixa renda ou em situação de rua. O texto tramita no Senado.

Outra ideia corre na Assembleia Legislativa de São Paulo desde outubro passado: o PL 1.177/2019 é um esforço das deputadas Beth Sahão (PT), Delegada Graciela (PL), Edna Macedo (Republicanos), Janaina Paschoal (PSL) e Leci Brandão (PC do B). Batizado de Menstruação sem Tabu, quer distribuir absorventes em cestas básicas, escolas estaduais, locais de internação de jovens infratoras, presídios e abrigos. E vai mais longe: busca criar ações, palestras e cartilhas que derrubem preconceitos em torno da menstruação, além de determinar que o governo estadual conceda incentivos fiscais para reduzir os preços do artigo. Já no Executivo, tanto o Ministério da Saúde quanto o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos afirmaram não estar desenvolvendo projeto algum ligado à pauta.

REALIDADE BRASILEIRA
A cada ciclo, uma brasileira gasta, em média, R$ 7 com absorventes, considerando o uso de três unidades de absorventes externos por dia, ao longo de cinco dias — numa vida, supondo que tenha começado a menstruar aos 12 anos e parado 40 anos depois, o gasto é de cerca R$ 3.500, desconsiderando mudanças na inflação. Para quem conta as moedas para sobreviver, isso é muito. Após uma conversa até então despretensiosa que levou a essa conclusão, a geógrafa Carolina Chiarello e a estudante de engenharia de produção Talita Soares decidiram criar o Projeto Tô de Chico (instagram.com/eutodechico). A dupla reúne doações de absorventes e as distribuem para mulheres em situação de rua no Rio e em Niterói desde dezembro de 2018. Já nas primeiras entregas perceberam que de nada adianta dar absorventes se as mulheres não têm sequer calcinha em que prendê-los. Passaram então a inclui-las (e também sutiãs) nas doações. “Chegamos com sacolas e as mulheres escolhem as cores e os modelos que querem, o que também ajuda a autoestima”, conta Talita. “Não é porque é doado que tem que aceitar ‘o que tem’. A gente quer dar autonomia para elas”, complementa Carolina.

Os absorventes também são parte de um programa que a ONG britânica Plan International oferece em comunidades no Piauí e Maranhão. Nesses estados, o desafio começa com a falta de água limpa e esbarra na ausência de banheiros adequados. O pacote fica completo com o preconceito que afasta garotas de diversas atividades durante o ciclo, a dificuldade para o descarte correto dos absorventes usados nesses locais e também a falta de dinheiro para comprar o produto. “Além de doação de absorventes, 240 mulheres receberão informação sobre esse tema e serão capacitadas para repassarem seus conhecimentos para mais 6 mil meninas das comunidades e escolas locais. Nosso objetivo é falar sobre higiene e saúde sexual, quebrando estigmas que existem sobre o assunto e ajudando a formar meninas mais seguras”, conta Cristina Santiago, diretora de marketing da Sempre Livre, empresa parceira no projeto.

Apesar do patrocínio, nem todos os ensinamentos envolvem o uso dos absorventes descartáveis, explica Nicole Campos, gerente técnica da Plan International Brasil. Também envolvem alternativas sustentáveis e mais econômicas como calcinhas absorventes, coletores e até os “paninhos”. “Os ‘paninhos’, que as nossas avós usavam, ainda são realidade em muitos locais. E pelo tabu as meninas têm vergonha de estender os ‘paninhos’ no varal porque não querem que vizinhos saibam que estão ‘de Chico’, mas eles precisam do sol para tirar as bactérias”, diz. Se você nem imaginava uma cena assim em 2020, é porque tem privilégios — e pode escolher não se esquecer de quem ainda nem consegue menstruar com dignidade.

Fonte: Revista Marie Claire – Comportamento – 24/01/2020

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