Ação penal em casos de guerra fiscal

 

Por Fatima Cassaro e Heloisa Estellita

O ICMS é um imposto de competência dos Estados, regulado pela Lei Complementar nº 87/96, que confere a instituição desse imposto a cada um dos Estados de forma autônoma. Essa lei, porém, dispõe apenas sobre as regras gerais que devem ser observadas, sem interferir na competência de cada Estado e do Distrito Federal de, efetivamente, instituir o ICMS e definir as obrigações acessórias decorrentes. Por exemplo, a Lei nº 87 não determina o regime de concessão de incentivos e benefícios fiscais, atribuindo aos Estados a incumbência de celebrar convênios para sua concessão por meio do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).

Curiosamente, esse conselho não foi regulamentado e não possui poder de coerção, o que causa o descontrole sobre a concessão unilateral de benefícios pelos Estados, os quais acabam sendo objeto de questionamento por outros Estados. Eis a origem da chamada “guerra fiscal” entre os Estados e Distrito Federal.

A descentralização normativa na estrutura do ICMS tem por consequência diversos outros pontos negativos que resultam na ineficiência da estrutura do sistema tributário, gerando questionamentos não apenas no âmbito tributário, mas também no penal. Uma parcela desses questionamentos decorre, sobretudo, de operações interestaduais nas quais o sujeito passivo que adquire mercadorias é privado de utilizar os créditos de ICMS destacados nas notas fiscais de aquisição sob a alegação de que tais valores não teriam sido efetivamente recolhidos ao Estado de origem em razão de um determinado benefício fiscal ali concedido sem aprovação do Confaz.

Além da exigência da devolução dos créditos, os contribuintes destinatários das mercadorias também acabam sendo obrigados a arcar com uma penalidade em decorrência de uma suposta utilização indevida do crédito de ICMS, o que acarreta um custo adicional para contribuintes que apenas cumpriram com o princípio da não cumulatividade que rege esse imposto. Fato é que tais normas são efetivamente válidas nos Estados de origem e as Fazendas Públicas dos Estados destinatários sequer possuem titularidade para exigir o tributo, já que devido ao Estado de origem.

Com operações contabilizadas e registradas nos documentos fiscais, não há que se falar em prática de crime No âmbito tributário, tal discussão acarreta verdadeiro custo de adimplemento para os envolvidos nas operações interestaduais, que podem ser questionadas pelos Estados destinatários sem qualquer garantia a segurança jurídica. Não bastasse, esse tipo de situação também já foi objeto de questionamento no âmbito penal sob o fundamento de que as informações contidas nos documentos fiscais seriam falsas, por não refletirem o correto valor que estaria sendo efetivamente recolhido ao Estado de origem, o que daria ensejo à acusação da prática de crime contra a ordem tributária.

A conduta do contribuinte com base em uma norma válida de um ente federativo, todavia, não pode acarretar tal forma de responsabilidade, porque o contribuinte que deixa de recolher o tributo o faz com base em norma plenamente válida no ordenamento jurídico do ente Federativo concessor do benefício fiscal, de sorte que o questionamento quanto à inexistência de um convênio validando tal benefício não tem o condão de retirar tal norma do ordenamento jurídico, nem mesmo de caracterizar a atitude do contribuinte como fraudulenta.

Sendo as operações devidamente contabilizadas e registradas nos documentos fiscais obrigatórios, não há que se falar em prática de crime contra a ordem tributária, cuja configuração depende de conduta que omita dados ou informe dados falsos à autoridade tributária. A estrutura básica do crime tributário exige, de um lado, uma conduta fraudulenta (omissão, informações falsas, uso de documentos falsos etc.), de outro, o resultado de não pagamento ou pagamento a menor do tributo. Ausente qualquer desses elementos na conduta concreta, não há que se falar em crime.

E é justamente o que ocorre em casos de ações penais baseadas em autuações oriundas de casos de “guerra fiscal”. Nesse sentido, recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) declarou a atipicidade da conduta do crime contra a ordem tributária em caso de guerra fiscal já que “se os dados informados na nota fiscal são exatos e correspondem à realidade, refletindo fiel e cabalmente os detalhes da operação de compra e venda de mercadoria, com os lançamentos tributários exigidos por lei e já com pagamento antecipado e tempestivo do ICMS devido”, então “Não se pode imputar a prática de crime tributário ao contribuinte que recolhe o tributo em obediência ao princípio constitucional da não cumulatividade, bem como mantém a fidelidade escritural dentro das normas (em princípio) válidas no âmbito dos respectivos entes da Federação” (STJ, EDcl no HABEAS CORPUS 196.262 ­ MG).

Questionamentos como este no âmbito penal geram ainda mais custos financeiros tanto aos contribuintes, quanto ao erário público, o que só faz confirmar que é a complexidade causada pela ausência de produção normativa centralizada que dá origem a uma multiplicidade de questionamentos em diferentes esferas jurídicas. A centralização em um só órgão diminuiria grande parte dos litígios existentes, maximizaria os benefícios da arrecadação do ICMS com a dispensa da manutenção do maquinário estatal para resolução desses conflitos e diminuiria o custo de adimplemento para os contribuintes.

Fatima Cassaro e Heloisa Estellita são, respectivamente, advogada e mestranda na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas; professora do curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Fonte: Valor

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