EUA e UE tentam pôr em xeque as regras de decisão da OMC


Perto de completar duas décadas, a Organização Mundial do Comércio não conseguiu ampliar as fronteiras da liberalização do comércio global. A Rodada Doha fracassou há seis anos e, se esse foi seu maior revés, não foi o único. A possibilidade de entendimentos para ressuscitar a agenda da liberalização, por meio do Acordo de Facilitação de Comércio – uma gigantesca faxina nos procedimentos aduaneiros -, foi enterrada pela negativa da Índia, acompanhada por Cuba e Venezuela. O sistema de decisão da OMC foi mais uma vez colocado em xeque e Estados Unidos e União Europeia estariam agora procurando abrir brechas no esquema que julgam ter paralisado a instituição: a necessidade de consenso entre os 160 membros da organização (“Financial Times”, 13 de outubro). É uma iniciativa muito polêmica e de difícil realização, mas, até agora, a única que surgiu em resposta aos apelos do diretor-geral, Roberto Azevêdo, para que os rumos da instituição fossem reavaliados.

Árbitro das disputas comerciais internacionais, a OMC vive um vazio na agenda da liberalização, e está sendo cercada pela proliferação de acordos bilaterais ou regionais de comércio – são 253 em vigor, pelos cálculos da instituição. Esses acordos não são antagônicos a um outro, geral, buscado pela OMC. Na ausência dele, porém, são a tendência predominante que pode se revelar única, caso a OMC não saia do imobilismo. Azevêdo tem sido enfático na necessidade da ampliação multilateral das possibilidades de comércio. “As regras atuais foram acordadas há 20 anos – precisam ainda entrar no século XXI”, disse.

Nas quase duas décadas da OMC, as cadeias de produção globais se aprofundaram velozmente. De 30% a 60% das exportações totais do G-20, as nações mais prósperas, são insumos usados nas cadeias globais de produção de seus países ou de outros. Em tese, o estreitamento dos vínculos de produção favorece um acordo geral de liberalização do comércio. Na ausência de um, podem funcionar como substitutos imperfeitos, compatíveis com os interesses econômicos das empresas multinacionais, que comandam o processo das cadeias e, com isso, 80% do comércio global.

No vácuo da OMC, os interesses dos países desenvolvidos e de alguns emergentes, por meio de suas empresas, têm se articulado rapidamente, buscando consolidar as redes regionais implantadas, desenhando mapas de produção cada vez maiores. Hoje há dois mega-acordos a caminho, embora não se saiba se serão concluídos: a Parceria Trans-Pacífica, amarrada entre EUA, Japão e 12 países do Pacífico, e a Parceria Transatlântica para Comércio e Investimentos, entre as maiores potências do comércio global, EUA e UE.

O perigo desses acordos ocuparem o espaço de uma OMC tornada irrelevante é que deixarão em desvantagem os demais países. Esses grandes arranjos regionais definiriam seus próprios padrões tecnológicos e regulatórios das trocas comerciais, reproduzindo em escala ampliada o que já vem ocorrendo: as barreiras não tarifárias têm hoje um peso maior do que as tarifárias no comércio entre países. Sem regras gerais, como é missão da OMC construir, o “ambiente comercial seria imprevisível e injusto”, com a “prevalência do direito dos mais fortes”, segundo Azevêdo.

Foi em parte por esses motivos que o Brasil jogou todas suas cartas na negociação multilateral, deixando de lado o que outros países fizeram, de buscar ao mesmo tempo vantagens bilaterais ou regionais. Mas o problema da OMC é pior do que o brasileiro, que não é pequeno. Se as engrenagens do comércio internacional se tornarem independentes da OMC e criarem um mundo comercial a parte, até mesmo as funções regulatória e de arbitragem em disputas da organização, com o tempo, terão também sua importância erodida. Os novos acordos avançariam em grandes áreas não reguladas por normas que já não respondem à modernização das duas últimas décadas.

O que EUA e UE estão querendo é quebrar a regra do consenso, em troca da possibilidade de acordos “plurilaterais”, com a adesão do máximo de países que concordarem com seus termos sobre propostas específicas. Há sérios obstáculos à ideia, alguns formais: pelas regras, é preciso consenso mesmo para determinar que ele não será mais necessário. O multilateralismo praticado até agora pela OMC chegou a um impasse. Como rompê-lo aprofundando os benefícios para o comércio global é um quebra-cabeças infernal, que precisa ser montado.


Fonte: Valor Econômico

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